GRAMADO - Personagens masculinos que sofrem a pressão do dia a dia ou de uma situação específica que o levam ao colapso mental são mais comuns de se ver no cinema brasileiro. Quando surgem mulheres neste contexto, elas logo encontram uma forma de redenção. O filme "Nó" se difere justamente neste aspecto.
Apesar de o final apontar para a sororidade, o longa de estreia de Laís Melo, que abriu a mostra competitiva do Festival de Cinema de Gramado neste sábado (16), é um mergulho dolorido em torno de uma assalariada recém-divorciada que precisa provar, para si mesma e para a sociedade, que pode criar suas três filhas.
A narrativa se concentra nessa rotina estafante de uma mulher comum. A beleza da construção da personagem, vivida por Patrícia Saravy, reside nesta reconhecível simplicidade, a partir de sua jornada dupla como trabalhadora e mãe, com uma presente pressão da sociedade a condená-la todos os dias.
O filme é um desdobramento do curta "Tentei", lançado em 2017, quando a mesma personagem, Glória, toma coragem para largar o marido em busca de dignidade. O nome Glória é muito simbólico, no cinema, dessa mulher que precisa encontrar forças Interiores para superar as adversidades que a vida apresenta.
Há desde a Glória do filme-título de John Cassavetes à protagonista de um filme chileno (também "Glória"), de Sebastián Lelio, com o qual "Nó" se identifica mais, até pela realidade da mulher sul-americana que traz. Nós dois trabalhos, as pequenas vitórias, conquistadas com empenho e dor, são valorizadas.
Esse triunfo pode ser medido no comovente discurso-dasabafo de Glória diante da juíza, na audiência em que o ex-marido pede a custódia total das filhas, simplesmente como demonstração de poder masculino. A ausência dele não é só ressaltada por ela como também pelo filme, já que nunca vemos o rosto dele.
No depoimento de Glória, ela fala da criação de um quarto filho, em referência ao ex, um infantilismo endossado pela sociedade patriarcal, ao contrário da maturidade que se exige da mulher, que sempre precisa seguir uma linha reta. Não é um filme revanchista, como Laís Melo deixa claro, mas colocar as coisas por um prisma real.
Há vários elementos de simbolismo no filme, como os estranhos calombos que surgem no corpo de Glória, mas a história não flerta muito com o imaginário. É mais pé no chão, apostando fundamentalmente na presença dos corpos femininos. Não aparece, por sinal, nenhum personagem masculino significativo no filme, numa curiosa inversão do Teste de Bechdel.
No Teste, criado pela cartunista Alison Bechdel, os filmes são avaliados pela maneira como as mulheres são inseridas na história, em que é preciso ter, pelo menos, duas mulheres, que teriam que dialogar entre elas e não falar de homens. "Nó" seria desaprovado num Teste para homens, já que se instala propositadamente neste universo da mulher.
O filme adensa essa presença feminina, com cenas desses corpos entrelaçados, como um sinal de força a partir desse entendimento de que é preciso tirar esse grande peso secular das costas. Isso se dá especialmente pela personagem trans Maga, que atua como essa necessária figura de apoio, sempre disponível para ouvir e ajudar.
Atriz piauiense, Fernanda Silva se sobressai como Maga - um nome a ser considerado pelo júri oficial para receber o Kikito de coadjuvante. Saravy reforça essa força feminina no filme, num papel que se aproxima da Paula de "A Felicidade das Coisas", em que também faz uma mulher grávida que vê todos os problemas de um empreendimento familiar equivocado cair sobre os seus ombros.