O tapete vermelho ainda nem foi estendido, mas o Festival de Cinema de Veneza de 2025 já desfila em meio a uma grande controvérsia - e de saia justa. Um grupo de mais de 1.500 intelectuais e artistas ligados ao audiovisual lançou um manifesto contra a truculência do governo de Israel diante da população em Gaza, mas exigindo em uma carta aberta que a direção do festival, apesar de claramente pacifista, se posicione de maneira mais enfática no mesmo sentido.
Em um ato inédito na história recente do festival, um dos principais do cinema, o documento pede que duas grandes estrelas de Hollywood aguardadas em Veneza, Gerard Butler e Gal Gadot, sejam oficialmente desconvidadas pelo evento, devido a suas posições políticas em defesa das ações israelenses. Entre quem assina, diretores de grande importância, como Marco Bellocchio, Alice Rohrwacher, Ken Loach, Abel Ferrara e Matteo Garrone.
Os atores estão no elenco de "In the Hands of Dante", de Julian Schnabel, exibido fora da competição. A assessoria do longa já afirmou que ao menos Gal Gadot poupará Veneza de uma situação mais embaraçosa e, por conta própria, decidiu não participar da festa. Até a publicação deste texto, a presença de Butler ainda era uma incógnita.
O grupo Venice4Palestine promete uma mobilização especial com a presença de diversos dos assinantes, em manifestação prevista para o dia 30, na ilha do Lido, que concentra as atividades do festival. "Quanto às manifestações pró-Gaza, eu ficaria surpreso se isso não acontecesse, visto que elas estão ocorrendo em todo o mundo, em todos os tipos de contextos", disse o diretor da mostra, Alberto Barbera, em entrevista à revista "Variety".
No mês passado, em declaração sobre a edição do festival deste ano, Barbera foi mais vago, limitando-se a comentários gerais do tipo "o cinema não propõe soluções". Após a pressão do Venice4Palestine, manifestou-se novamente, mas seguindo a mesma linha: "Sempre fomos lugar de discussão e sensibilidade a todos os temas que lidam com a sociedade e o mundo".
O Festival de Veneza, agora em sua 82ª edição, é o mais antigo do mundo - nasceu em 1932 sob o regime fascista italiano. Após a Segunda Guerra, mudou de perfil, tornando-se mais progressista, ainda que seu foco tenha sido o no arrojo estético da programação.
Em 1968, o Festival de Cannes foi interrompido diante da agitação social causada pela revolta estudantil, e, meses depois, com a poeira mais baixa, Veneza se recusou a fazer o mesmo. Não pegou bem e, sob a ameaça de um boicote internacional, a partir dali o evento italiano ficou mais de uma década existindo apenas para projetar filmes, sem ser competitivo.
Nos anos 1980, voltou ao formato original. Após graves crises financeiras, só se recuperou na década passada, ao conseguir se fixar como catapulta mundial dos longas cotados para o Oscar. Basta lembrar que "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, foi exibido em Veneza pela primeira vez, meses antes de garantir a estatueta dourada ao Brasil de melhor filme internacional.
Veneza permanece com uma visão relativamente conservadora enquanto entidade - entre os grandes eventos, foi o último a fazer um esforço no sentido, por exemplo, de abrir mais espaço para cineastas mulheres. "Priorizamos a qualidade de um filme, não o perfil de quem o realiza", costuma dizer o diretor Barbera.
Pouco a pouco, porém, foi aderindo à onda e, nesta edição, dos 21 filmes disputando o Leão de Ouro, seis são de diretoras - número ainda baixo, mas um avanço. Neste ano, mais pressionado, talvez Veneza precise retomar um processo de definição política mais assertivo. Mas ao menos a programação, apesar de bem variada tematicamente, vem carregada de filmes que lidam com questões políticas e urgentes.
O mais direto ao ponto parece ser "The Voice of Hind Rajab", da tunisiana Kaouther ben Hania. A história se baseia em um fato ocorrido em Gaza, quando uma garota de cinco anos pediu socorro por telefone a paramédicos, pouco antes de morrer após um ataque israelense. Em sua nota de intenção, a cineasta explica: "Após ouvir a gravação do telefonema, soube que tinha que largar tudo e fazer este filme".
Também com os pés fincados em 2025, mas falando de outra época, "The Wizard of the Kremlin", do francês Olivier Assayas, mostra a Rússia pós-colapso soviético nos anos 1990, evidenciando a ascensão de um ex-membro da KGB que se tornaria presidente do país: Vladimir Putin, interpretado por Jude Law.
O húngaro László Nemes fala de tema aparentado em "Orphan", revisitando a Hungria sob influência stalinista para dissertar sobre o totalitarismo. Sua compatriota Ildikó Enyedi prefere o lirismo para abordar um tópico fundamental: a ecologia. Em "Silent Friend", uma árvore é o centro de uma trama passada em três épocas diferentes.
Afastada das telas há sete anos, a americana Kathryn Bigelow apresenta "A House of Dynamite", sobre o perigo das armas nucleares no contexto de tensão internacional como o de hoje. E mesmo "Frankenstein", do mexicano Guillermo Del Toro, certamente trará, por meio da metáfora, um olhar condenando o preconceito ao diferente e debatendo a ética sobre o uso da tecnologia - o que vem a calhar em tempos de inteligência artificial.
O festival começa na noite desta quarta-feira (27/8), com a exibição de "La Grazia", do italiano Paolo Sorrentino. Ao que parece, é uma obra de ares intimistas, estrelada por seu ator preferido, Toni Servillo. Ainda na competição, o Lido verá nos próximos dias "Bugonia", do grego Yorgos Lanthimos, em nova colaboração com Emma Stone, e "Jay Kelly" do americano Noah Baumbach, com uma inusitada parceria entre George Clooney e Adam Sandler. Destaca-se também "Father Mother Sister Brother", de seu compatriota Jim Jarmusch, com Cate Blanchett e Adam Driver.
Cineastas prestigiados de fora de Hollywood também terão presença, como o francês François Ozon, que adapta Albert Camus em "L'Étranger", e o italiano Pietro Marcello, que revisita a história de Eleonora Duse, a mais celebrada atriz do teatro da Itália, em "Duse".
Fora da competição, o Lido trará os novos filmes de Luca Guadagnino, Tsai Ming Liang, Aleksander Sokúrov, Sofia Coppola e Gus Van Sant. Não há produções brasileiras nesta edição, que se encerra no dia 6 de setembro.
Festival de Cinema de Veneza
Quando. De 27 de agosto a 6 de setembro
Onde. Diversos locais de Veneza
Link. https://www.labiennale.org/en/cinema/2025