A narrativa de "A Praia do Fim do Mundo", que entra em cartaz a partir desta quinta-feira (4), está umbilicalmente ligada à época de sua realização. Apesar de sua mensagem ambientalista e distópica estar bem explicitada, saber que o filme foi feito durante a pandemia de Covid-19 lhe confere outras camadas de interpretação, sociais e políticas. 

Há um sentimento de esvaziamento que diz muito sobre aquele período histórico brasileiro, em torno de duas pessoas, mãe e filha, que representam extratos de nossa sociedade: aquela que está vinculada a ideais conservadoras (a mãe), sem abrir mão de seus valores, e a que vê o mundo pela tela do computador (a filha), sem conseguir agir.

Apesar de opostas na maneira de ver uma situação, quando o mar começa a avançar sobre a propriedade, ambas não conseguem criar nenhum movimento. É como se elas tivessem sido pegas de surpresa, não entendendo os sinais que já vinham sendo manifestados há tempos. Neste sentido, o preâmbulo bíblico é muito importante. 

O longa mostra uma pintura referente à história de Jonas e a baleia, sobre um profeta que renegou Deus e foi castigado, passando três dias dentro do mamífero do mar. Só é salvo após pedir perdão por sua desobediência. Quando vemos uma baleia de verdade, ao final, entendemos que é sobre admissão de culpa que o filme fala.

Como nas parábolas bíblicas, a obra de Petrus Cariry aborda escolhas mais amplas, que não dizem respeito apenas às duas personagens. Ela aponta o descaso humano sobre a compreensão de que a vida é um todo, com os homens não separados da Natureza e seus mistérios.  Como nas histórias da Bíblia, é uma filme sobre falta de temor, afinal.

Como seu título sugere, "A Praia do Fim do Mundo" é uma parábola sobre a nossa extinção, o Apocalipse estampado na escolha de imagens em preto e branco bem contrastadas, que sugerem um elemento fantasmagórico. Por esse prisma, a casa seria o interior da baleia, com as protagonistas sofrendo uma punição que mal nos damos conta.

A mãe interpretada por Marcélia Cartaxo surge aprisionada naquele lugar, como se já tivesse aderido à construção, tornando uma coisa só. Ela é a própria negação, enquanto a filha (Fátima Macedo, de "Manas") tenta em vão sair desse estágio de condenação, diferindo da mãe somente pela consciência, o que não a torna menos culpada.

A esperança está no ventre da filha. O ser que virá poderá mudar tudo,  mas a garota não sabe se quer seguir adiante com a gravidez. Nunca vemos o pai. Aliás, praticamente só vemos mulheres, como se aos homens não fosse facultada essa discussão, pois já estariam extintos, desaparecidos, como o marido da personagem de Marcélia.

Petrus Cariry não elabora muito a questão do filho que virá, mas deixa claro a influência do cinema de terror e ficção científica, que têm nos futuros rebentos um sinal divino ou maléfico. A ligação com o gênero também se reflete nos enquadramentos, que mergulham num escuro profundo e silencioso, como se uma aguardada fosse emergir.

Marcélia tem uma interpretação magnética: pálida, praticamente muda e num luto eterno pela perda do marido, há 20 anos, que não retornou de uma pesquisa no mar, parece sugada por outra dimensão, em que a casa em ruínas é personagem. Ela realiza um incrível diálogo metafísico com o lugar, com a promessa de não se dissociarem.

O cinema brasileiro vem investindo no terror, mas é Cariry quem tem imposto uma identidade própria, baseada na realidade socioeconômica do país. São temores reais (a completa ausência do Estado) e simbólicos, traduzindo mitologias para a nossa cultura. Jonas, hoje, pode ser qualquer um que renegou o valor a todas as formas de vida.