Depois de abrir sua oitava edição durante a Virada Cultural de Belo Horizonte, o Circuito Urbano de Arte (CURA BH) recebeu nesta quinta-feira (4/9) uma visita guiada pelas curadoras Janaína Macruz e Priscila Amoni na Praça Raul Soares, que volta a sediar uma edição do projeto reconhecido por legar à cidade mirantes de arte em grande escala, que ocupam as fachadas cegas de grandes edifícios da capital mineira. A programação do festival segue até domingo (7/9).
O passeio, realizado para um grupo de convidados, depois encorpado por curiosos que aderiram espontaneamente ao percurso, incluiu uma apresentação geral do festival, que chega à sua primeira década de atividade no próximo ano enquanto planeja novos voos.
Em 2025, o CURA consolidou-se como instituto e vem expandindo suas ações para além de Belo Horizonte, com atividades em Nova Lima, na região metropolitana, e Manaus, no Amazonas. Apesar das fronteiras já ultrapassada, porém, Priscila volta às origens para descrever a iniciativa, que é apresentada por ela coml “fruto dessa BH anos 10” – em referência à geração que criou na capital eventos como a Praia da Estação, o Carnaval de rua e movimentos de cultura de rua no Viaduto Santa Tereza, como o Duelo de MCs, todos iniciados em meados de 2010.
Ainda sobre o CURA, Janaína destaca que mais de 80% da equipe do projeto é formada por mulheres e que a ideia é ampliar a presença feminina na pintura de grandes painéis. “Trabalhamos para que 60% dos convidados de cada edição sejam artistas mulheres”, relata.
Na Raul Soares, por exemplo, ao fim do festival neste ano, serão 13 painéis avistados da praça, sendo nove de mulheres, três de homens e um de um coletivo indígena.
Por fim, a curadora frisa que, ao longo de nove anos, o CURA formou profissionais para a execução de pinturas em grande escala, permitindo trazer para a programação artistas de galerias, indígenas e idosos que nunca haviam realizado trabalhos em empenas. Neste ano, aliás, todas as obras ao redor da praça são de mineiros mais habituados à lógica das galerias.
Entre as obras, Sylvia Amélia apresenta um trabalho que, com 66 placas de acrílico, cria uma espécie de pintura de luz: à medida que o sol se move, sombras se projetam na parede e formam letras que convidam à pausa, pássaros atravessam a composição, multiplicando a sensação de movimento em um painel que se transforma a cada momento do dia, num jogo entre luz e sombra.
Já o artista Paulo Nazareth assina seu primeiro mural em um prédio, dedicado a personagens históricos negros. A obra dá visibilidade a figuras esquecidas, como o escravizado Alforriado Matias, que, segundo registros ainda pouco explorados pela historiografia, teria liderado uma ação que resultou na morte do Major Cândido Brochado, senhor da fazenda onde hoje se localiza a região do Barreiro. Para a historiadora Keli Nobre, o gesto não deve ser lido como ato isolado de vingança, mas como parte de uma revolta articulada que envolveu mulheres escravizadas, responsáveis por sustentar e transmitir informações para a execução do plano. “É um indício forte de uma ação coletiva, de uma revolta organizada mais que uma simples vingança”, observa a pesquisadora.
Outra empena foi assinada por Julianismo, artista atuante na cena independente de Belo Horizonte. Sua trajetória passa pela Feira de Arte Chinelo, espaço autogestionado que busca dar visibilidade e retorno financeiro a artistas locais, fortalecendo a cena contemporânea da capital e região metropolitana. No painel realizado no Hotel Sorrento, a artista mantém a mesma energia de experimentação e circulação coletiva que marca sua produção.
Mais ações
Fora da praça, Deco Treco (Deco Farkas), de São Paulo, transforma o campus do UniBH em um mural lúdico e psicodélico, aproximando arte urbana da comunidade acadêmica.
O festival também ocupa a Raul Soares com esportes urbanos e programação musical. O Velódromo Raul Soares oferece corridas de bicicleta em clima de confraternização, enquanto o Highline Feelings coloca atletas a atravessar prédios a mais de 70 metros de altura. Nomes como DJ Naroca, Fê Linz, Bruna Castro, Pat Manoese, Black Josie, Sandri e a sambista Aninha Felipe se apresentam na praça.
A Raul Soares como palco de disputas e permanências
O percurso guiado também incluiu uma conversa sobre a própria Praça Raul Soares. As curadoras lembram que os grafismos marajoaras presentes em seu projeto urbanístico não são mero ornamento: o arquiteto responsável, Érico de Paula, fez uma alegoria ao destino do rio Amazonas, que deságua no arquipélago de Marajó, espelhando o traçado da Avenida Amazonas que passa justamente na praça.
Apesar de seu potencial como espaço de encontro, contudo, a Raul Soares foi transformada ao longo do tempo em uma grande rotatória, reduzida à lógica da cidade moderna que privilegia o fluxo de carros em detrimento da permanência das pessoas. “Há apenas duas árvores de copa grande em todo o espaço e praticamente nenhum banco”, critica Priscila. O CURA, ao ocupar o lugar, reivindica o contrário: que a praça volte a ser espaço de pausa, convivência e contemplação, como já aconteceu na rua Sapucaí, transformada em mirante urbano e ponto turístico da capital após as primeiras edições do festival.
Como instalação-manifesto dessa vontade, a edição de 2025 abriga na Raul Soares uma intervenção do artista francês JR, com 120 retratos feitos por frequentadores da praça durante a Virada Cultural de Belo Horizonte deste ano. O trabalho, realizado com estrutura desenvolvida pelo escritório Mutabile Arquitetura, reafirma a centralidade das pessoas na construção do espaço público. “Somos fãs do JR há muito tempo”, diz Janaína. “A obra dialoga com nosso desejo de trazer para cá mais vida, inclusive noturna, mas também diurna, com bebedouros, parque infantil, bancos, fontes e muita sombra, superando a lógica dos jardins eurocêntricos que ainda dita o desenho do lugar”, completa Priscila.
A noite de quinta foi coroada pela realização, com performances da House of Barracudas, de uma ball – evento da cultura Ballroom, movimento criado pela comunidade negra e latina LGBTQIA+ em Nova Iorque nos anos 1970 e que, em Belo Horizonte, ganhou força a ponto de transformar a cidade em referência nacional para batalhas de voguing.
A conexão entre a Raul Soares e essa cultura não é fortuita: o local é reconhecido hoje como espaço de convivência da população queer da capital, mas sua história é marcada por disputas. Em meados do século XX, especialmente nas décadas de 1950 e 1960, era frequentado tanto por parte da elite belo-horizontina quanto por pessoas então chamadas de “invertidas” ou “anormais”. Documentos históricos apontam que a polícia chegou a realizar operações de caráter higienista para expulsar a população LGBTQIA+ do local, sem sucesso. “Apesar da repressão, não houve política capaz de impedir que a Raul Soares fosse ocupada por essa comunidade, que a transformou em território de pertencimento”, explica o pesquisador Luiz Morando, autor de Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte.
Essa memória esteve presente já em 2021, quando o CURA levou para a praça uma projeção no icônico edifício JK, projetado por Oscar Niemeyer. A ação, em parceria com o coletivo Viva JK, partia de uma videoarte assinada por Éder Santos e Barão Fonseca para celebrar as travestis e mulheres trans de Belo Horizonte e a cultura ballroom da cidade. Entre as homenageadas estava Anyky Lima, militante histórica que havia falecido em março daquele ano.
A atenção à praça e suas tantas histórias, aliás, aparece em outro destaque desta edição do CURA: o encarte “Mapa Afetivo da Raul Soares”, de Priscila Musa, Jonjon e Xande Peroco, que, distribuído gratuitamente, registra histórias de moradores e referências culturais, mostrando a praça como território vivo.