Zizi Possi está falando na terceira pessoa, porque sabe “que isso acontece com todo mundo”. “É como quando você lê um livro pela primeira vez e acha maravilhoso, dali a tempos você volta a ler e enxerga coisas que tinham passado batido. Mas é porque na primeira vez você estava vivendo outro momento e não tinha a consciência que tem hoje”. A analogia da cantora é a “Choro das Águas”, canção de Ivan Lins e Vitor Martins que ela gravou em 1979, no segundo álbum da carreira, e que intitula o espetáculo que chega neste final de semana a Belo Horizonte. 

Versos de rara intensidade como “esse meu choro é muito doído/ me corta a fala, me tapa os ouvidos/ me fere os olhos com vidro moído/ sangra esse coração” ganharam outra conotação para Zizi. “A música entra para o repertório porque é possível enxergá-la com outros olhos, com os olhos do momento, da função social que ela pode ter”, vaticina. Os olhos e a emoção da intérprete têm se voltado para as mudanças climáticas, fato que delineou todo o espetáculo, concebido em parceria com o irmão, o diretor de teatro José Possi Neto, responsável pela parte cênica. 

“As mudanças climáticas afetam todo mundo, é um acontecimento global. Alguns poucos lugares têm um pouco mais de estrutura para atravessar esses momentos difíceis. E para a gente, no Brasil, não deixa de ser uma novidade a permanência e a insistência de tantos desastres climáticos, principalmente no Sul. Eu tenho 69 anos e não me lembro de ter acompanhado uma história em que o mau tempo, digamos assim, tivesse perdurado tanto”, conta Zizi. Essa estupefação foi o que a tirou “do seu cantinho” para querer fazer alguma coisa, a fim de amainar o próprio “coração partido”. 

“Isso me afeta de verdade, também porque a gente estava sabendo que atravessaríamos essas catástrofes. Acabamos de ter um terremoto no Afeganistão, depois de outro na Rússia. Eu não posso fazer muita coisa, mas na hora que posso dar um movimento na direção de algum carinho para as pessoas, isso acalma meu coração e acredito que pode acalmar o coração de muita gente que está sofrendo muito, famílias inteiras do Sul do Brasil que perderam tudo, que ficaram desabrigadas, e, na hora que estavam se levantando, tiveram que lidar com outro desastre”, lamenta Zizi. 

Conscientizar

É a primeira vez que a cantora dedica um espetáculo a “um momento catastrófico da humanidade”. “Acredito que a arte é a maneira mais saudável, bonita e eficiente para a gente alcançar aquela coisa maravilhosa e libertadora que se chama consciência”, justifica. Na opinião de Zizi, é fundamental ter em mente “que esses desastres seguem acontecendo”. “A nossa vida atual é super estimulada por tecnologias e por esse momento da humanidade onde se vive a ilusão de que quanto mais você produz, mais você é bacana. Eu acho que isso está matando a nossa criatividade e a nossa conexão com Deus”, critica.

Para a cantora, “a arte pode lembrar as pessoas do nosso lado humano e solidário”. No repertório, há espaço para sucessos de Gonzaguinha, Chico Buarque e Louis Armstrong. Zizi é acompanhada no palco pelo pianista Daniel Grajew, a quem ela não economiza elogios. “Ele é extremamente criativo. A loucura do Daniel me estimula e sei que a minha loucura o estimula também”, diverte-se. “São momentos incríveis, onde eu posso experimentar improvisos que eu nunca tinha me permitido. São momentos de liberdade”, complementa, entusiasmada. Ao longo de sua extensa trajetória, iniciada na década de 1970, Zizi experimentou outros momentos que se tornaram definitivos.

“Digo sem sombra de dúvida que ‘Pedaço de Mim’ foi um presente, não só pela música mas também pelo fato de o Chico ter me convidado para cantá-la com ele. Essa música é de uma poesia, uma profundidade, uma beleza, que eu realmente serei agradecida a minha vida inteira por ela”, exalta. Hoje, no entanto, Zizi não enxerga a mesma qualidade no horizonte. “Acho que nós tivemos um ápice de compositores, músicos, poetas, que, depois dos anos 1990, começou a diminuir. As mesmas pessoas continuaram fazendo coisas lindas, mas eu não consigo encontrar a beleza e poesia que já encontrei um dia, mesmo que seja com outra linguagem, outra forma, e olha que eu procuro muito. Infelizmente me sinto um pouco órfã”, declara. 

Isso não a impede de seguir conjecturando o futuro. Zizi garante que guarda “inúmeras músicas lindas” que pretende registrar em disco e ainda não gravou, o que nunca deixa de constituir um achado para quem alcançou o topo das paradas radiofônicas com “Asa Morena”, “Per Amore”, “A Paz”, “Meu Erro”, dentre outras. Ela também planeja, para 2026, um novo espetáculo, do qual não pode revelar mais detalhes, “por motivos que todo mundo sabe”. “Vou precisar de parceria para realizar, hoje em dia é difícil, mas não vamos desistir dos nossos sonhos”, arremata. 

Serviço

O quê. Espetáculo “Choro das Águas”, de Zizi Possi

Quando. Nesta sexta (5) e sábado (6), às 21h 

Onde. Cine Theatro Brasil (av. Amazonas, 315, Centro)

Quanto. A partir de R$75 (meia) pela plataforma www.eventim.com.br ou na bilheteria do teatro