Na vez de Chico Buarque, o humorista Millôr Fernandes (1923-2012) dispara: “Vou apresentar o que até ontem era a única unanimidade do Brasil, porque ontem o Rubem Braga me disse que pegou um taxista que não gostava do Chico Buarque”. O registro está no LP lançado pelo Quarteto 004 em 1968, intitulado “Retrato em Branco e Preto”, com participação de Tom Jobim, e esclarece a frase que se transformou em lenda na música brasileira. Pois a pretensa “unanimidade” de Chico nunca foi unânime, para deleite de Nelson Rodrigues, que cunhou a máxima “toda unanimidade é burra”, como recorda o jornalista Hugo Sukman.
“A fala do Millôr era uma piada. O que explica a quase unanimidade do Chico é que ele encarnava a transição da bossa nova para um novo momento estético e político. As pessoas estavam esperando alguém que lidasse com o samba tradicional daquela forma, e o Chico chega com aquela qualidade assombrosa, aqueles versos perfeitos”, sublinha Sukman.
Acusado “injustamente de conservador” no início da carreira, Chico logo se veria diante de um acirrado embate com os tropicalistas. “De todos os grandes compositores da MPB, Chico sempre foi o mais popular, que vendeu mais discos. Havia essa contradição entre a assimilação da sociedade por um lado, e, do outro, da militância política, que, com o tempo, ficou cada vez mais explícita…”, analisa Sukman.
Para o jornalista Pedro Alexandre Sanches, “a impressão de unanimidade vinha do fato de que Chico era um homem branco, heterossexual, de olhos azuis e de família rica, o tipo exato de cidadão blindado pela sociedade inteira, da esquerda à direita”. “O desmoronamento dessa figura padrão nos últimos anos, via redes sociais, tirou a impressão de unanimidade do nosso maior herói musical, o que até acho saudável em grande medida”, afiança Sanches, para quem “Chico soa mais progressista em termos de conteúdo, enquanto os tropicalistas Gilberto Gil e Caetano Veloso o são na forma”.
Autor de “O Que Não tem Censura nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar”, Márcio Pinheiro diz que “Chico permanece sendo uma figura imprescindível, seja na atuação artística, seja no debate sobre o futuro do Brasil”. “Mesmo o Chico recolhido ainda é uma das vozes mais lúcidas de sua geração. Se hoje ele se espanta ao ver as redes sociais tomadas pelo ódio, muitas vezes inclusive contra ele, Chico se mostra ainda melhor. É, creio, uma figura mais abrangente do que no tempo em que até chegou a ser apontado como uma das poucas unanimidades nacionais”, sustenta Pinheiro.
André Simões, que publicou “Chico Buarque em 80 Canções”, advoga que Chico, “conscientemente, nunca deixou a ideologia contaminar a sua obra”. “As críticas que procuram diminuir o que ele construiu artisticamente, por conta de preferências partidárias, são muito mesquinhas. Não há como passar pela canção popular mundial sem passar pelo Brasil, e, nesse quesito, Chico é um dos grandes autores de canção de todos os tempos, ombro a ombro com Lennon & McCartney, Bob Dylan, os irmãos Gershwin, Cole Porter, qualquer um”, conclui Simões.
Um novo Chico Buarque?
O crítico musical Hugo Sukman pondera que, “nesse capítulo da canção brasileira, Chico Buarque é fruto de um tempo da indústria cultural que não existe mais”. “Hoje, é muito difícil surgir algo parecido, sobretudo pela junção que ele realiza de criação popular com um nível de erudição, e isso estar associado a um produto para vender no mercado, abrindo novela, vendendo milhares de discos, tocando no rádio”, observa Sukman.
O jornalista Pedro Alexandre Sanches é mais cauteloso. “Acho que nossa falta de perspectiva sobre o presente não deixa ver se o Chico do século XXI existe e está andando por aí ou se nunca foi nem nunca será suplantado. Não acho que a gente tenha distanciamento nem maturidade para medir com precisão qual é a grandeza real de Mano Brown, Russo Passapusso, Alice Caymmi, Criolo, Emicida, Filipe Catto, e uma pá de gente ainda mais jovem que esses”.
Segundo Sanches, “a impressão de que não há nem haverá outro Chico, Caetano, Elis, Gal, me parece conservadora e apegada aos modelos antigos”. “Queremos que o novo Chico componha as mesmas canções que o Chico original compôs há 50 anos, e isso não vai acontecer. O gênio de Chico é nítido e notável, mas acredito que cultivamos uma romantização um pouco mórbida da ditadura de 1964 e dos heróis que pelejaram contra ela”, reflete.
Sukman adverte que a obra de Chico está “cada vez mais ousada, elaborada e até vanguardista, dentro do formato canção”. Ele salienta que a recente “Que Tal Um Samba?” traz uma “pegada latina, salseira, meio cubana”, numa tradição épico-histórica do próprio compositor. “Sempre que há algo importante para acontecer, Chico surge com uma canção que dá conta do momento do Brasil”, assegura Sukman.
Ele cita “Roda Viva”, “Apesar de Você” e “Vai Passar” como emblemas, na sequência, dos protestos contra o golpe, da ditadura militar e da redemocratização do país. “Seguindo a tradição do pai (o historiador Sérgio Buarque de Holanda), a obra do Chico é incontornável para conhecer o Brasil. ‘Que Tal Um Samba?’ é sobre o momento em que nos livramos, ao menos provisoriamente, da ameaça fascista”, opina Sukman, que interpreta a junção de “ignorância” e “força bruta” presente nos versos do samba como sinônimo de fascismo.
Nesse particular, Pedro Alexandre Sanches concorda. “Tudo está acontecendo outra vez agora, com os golpes dos anos 2000, a escalada fascista, o caos ambiental. A falta de distanciamento e de proporção não deixa a gente ver com clareza o quanto nosso presente é rico e complexo, talvez tanto quanto foi o ‘passado romântico’ da ditadura. Chico, em si, é muito menos romântico e mais combativo que Roberto Carlos, mas tenho sérias dúvidas se os fãs dele também são”, afirma Sanches.