Disco

Antonio Carlos Bigonha lança 'Saudades de Amanhã'

Álbum traz nove faixas instrumentais com arranjos de Dori Caymmi

Por Da Redação
Publicado em 18 de janeiro de 2021 | 09:00
 
 
 
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Logo que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, com a decorrente exigência de isolamento social, o músico mineiro (de Ubá, mas radicado em Brasília) Antonio Carlos Bigonha e o carioca Dori Caymmi, amigos há tempos, passaram a se falar por telefone quase diariamente - o último de Petrópolis, onde mora atualmente. "O contexto das nossas conversas era sempre a perplexidade diante da situação do Brasil na pandemia, sem um projeto sanitário nacional - naquela época, com uma troca frequente do chefe da pasta da Saúde, na iminência de uma recessão, os sucessivos escândalos nacionais", enumera Bigonha. 

A conversa era sobre o Brasil, com enfoque particular sobre o vírus, mas os rumos acabaram, claro, incluindo também a música, o grande denominador comum na vida de ambos. E conversa vai, conversa vem, veio a ideia de produzir um álbum que tentasse traduzir sentimentos comunados - contraditórios, por vezes - e impregnados de dúvidas e de nostalgia. "O Dori me falava de um Brasil grande que foi prometido à geração dele, porém, nunca foi entregue. O país do futuro de um tempo que nunca chegou", lembra Bigonha. "Eu, por minha vez, falava de um projeto de nação que Darcy Ribeiro profetizou: nós, brasileiros, como uma gente mestiça e tropical, uma nova civilização que floresceria em um amanhã que nos foi usurpado pela criminalização da política, a partir dos anos 2010", recorda o mineiro. 

Veio, daí, o título do álbum, "Saudades de Amanhã", que, na tradução de Bigonha, transfigura-se em uma espécie de "convocação à retomada da ação no presente". E com qual finalidade? "A construção do Brasil com papel destacado no 'concerto das nações', como um povo orgulhoso de si próprio - como podemos ser", explica ele.

Amigos e parceiros 
Embora a amizade com Caymmi venha de anos, essa é a primeira vez que os dois ativam o botão de uma outra faceta do trabalho conjunto: a divisão de créditos em uma composição. "Veja, eu conheci o Dori em 2007, e somente agora, em 2021, fizemos nossa primeira música juntos. Mas a verdade é que sempre agi de uma maneira muito respeitosa, sem forçar a barra, para não ser inconveniente. Acho que por um vício dos mineiros", pontua Bigonha. Este é, portanto, o quarto trabalho  de Bigonha e o segundo com participação de Dori - só que, agora, mais espraiada.

À semelhança dos álbuns anteriores, "Azulejando" (2004), "Urubupeba" (2010) e "Anathema" (2018), "Saudades de Amanhã" aposta na música instrumental como uma forma universal de expressão. "Tanto já se discutiu a respeito do significado musical e sobre os múltiplos sentidos com que a obra de arte pode ser interpretada. E eu acredito que essa multiplicidade de significados é ainda maior na música instrumental, a partir da qual o ouvinte pode construir a sua própria história, sem as balizas literárias da canção com letra", analisa Bigonha, que aponta um aspecto curioso em sua obra: por vezes, ela é mais ouvida no Japão, na Coreia ou na Rússia, para citar alguns exemplos, do que no seu Brasil. "O que, imagino, se deva ao fato de serem temas instrumentais, bem melódicos e estruturados em formas mais complexas do que o bebop", aventa. 

Feliz por ter conseguido editar o novo álbum em plena pandemia, ele estende os méritos "à generosidade e ao profissionalismo dos parceiros": Jorge Helder (contrabaixista) e Jurim Moreira (baterista). "Pessoas que empenharam todo o seu talento e paciência para conseguir um resultado que considero tão bom em um contexto tão adverso".  Uma cereja: o disco conta com a participação da Orquestra de Cordas de São Petesburgo, que, segundo Bigonha, atingiu "um sotaque que soa tão brasileiro". 

Tempos modernos

Durante os meses de gestação de "Saudades de Amanhã", Bigonha ia remetendo os temas por partitura e áudio, via e-mail, a Dori. Ele, por seu turno, ia devolvendo os arranjos, também pela web. Na sequência, Bigonha imprimia no computador e ia tirar ao piano, juntamente com seu filho, Márcio, que é violonista. "Aquela inundação de beleza na nossa alma foi um paliativo para o isolamento social e para a tensão decorrente da pandemia. Ficávamos ali, eu, Márcia (sua mulher) e nossos filhos Antonio, Márcio e Roberto, maravilhados com a chegada daquelas partituras que eram um bálsamo para o nosso coração. Nunca teremos palavras suficientes para expressar nossa gratidão, nem teremos como retribuir à altura a generosidade deste grande brasileiro, Dori Caymmi, na construção deste 'Saudades de Amanhã'".

Confira, a seguir, outros trechos do bate-papo feito à distância.
Quando e como se deu a sua aproximação com Dori Caymmi?
Em 2007, participei da produção do álbum "Flor de Pão", da cantora Simone Guimarães, para a gravadora Biscoito Fino. Ela gravou duas canções compostas em parceria comigo, a própria "Flor de Pão" e a valsa "Confissão". Tivemos a ideia de encomendar um arranjo de cordas para a valsa e o primeiro nome que nos veio à mente foi o de Dori Caymmi, pelo trabalho belíssimo que ele já tinha feito tantas vezes para a irmã, Nana, e para outras cantoras, como  Sarah Vaughan e Zizi Possi, além de ter feito orquestrações para Antonio Carlos Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo e tantos outros. Como nós não tínhamos o contato dele, que na época morava em Los Angeles, a Simone pediu ao Renato Braz, amigo comum dos dois, e que também participava de uma das faixas do "Flor de Pão". Liguei para ele, com a cara e a coragem.

E como foi a recepção? Ele me atendeu muito bem quando falei no nome do Renato Braz. Entendeu os termos da encomenda, mas impôs apenas uma condição: que eu mandasse um CD com o áudio da valsa e a partitura para ele analisar. Se gostasse da música, aceitaria a encomenda. Postei nos Correios e, uns 15 dias depois, recebi um telefonema muito animado dele, elogiando tanto a valsa quanto a letra que a Simone tinha escrito. E, assim, concordou em fazer o trabalho. Meses depois, já no Rio de Janeiro, nos conhecemos pessoalmente no Estúdio Companhia dos Técnicos, quando fizemos a gravação do arranjo de base da valsa e a Simone cantou acompanhada por mim, ao piano, e pelo Jorge Helder, no contrabaixo. Dias depois fomos para o estúdio da Biscoito Fino e gravamos o arranjo belíssimo que ele escreveu para um quarteto de Simone. Desse projeto, a partir das conversas no estúdio, nasceu a ideia de gravar um álbum com outros temas instrumentais de minha autoria, com arranjos e orquestrações dele, o que resultou no álbum "Urubupeba", lançado em 2010.

E a partir daí, então, o trabalho profissional se desdobrou em amizade... Sim, neste meio tempo, começamos a nos falar muito ao telefone, para tratar da produção do álbum e fomos estreitando nossa amizade. A Nana Caymmi ouviu a valsa "Confissão" e resolveu gravar para a Som Livre, no CD "Sem Poupar Coração", com um novo arranjo do Dori. Ele veio algumas vezes tocar em Brasília e eu abri o show para ele com o meu quarteto. Aliás, sempre que ele vinha, mesmo que não viesse a Brasília, eu reservava um tempo para ir visitá-lo no Rio, e, assim, foi se fortalecendo a nosso confiança e a amizade estendeu-se a toda a família, ao Danilo e à Nana.

Como veio a ideia, agora, da parceria, já que, no release, está escrito que só agora ficaram à vontade para escrever músicas juntos... Veja, eu tenho muita influência do Dori nas minhas composições. Quando era garoto eu assistia àquelas novelas da Rede Globo, e o programa "Sítio do Picapau Amarelo", e as trilhas todas eram compostas e produzidas pelo Dori, de modo que essa sonoridade está impregnada na minha memória musical. Eu conheci o Dori em 2007 e somente agora, em 2021, fizemos nossa primeira música juntos, porque eu sempre agi de uma maneira muito respeitosa com ele, sem forçar a barra, para não ser inconveniente, acho que por um vício dos mineiros. Quando os arranjos do novo álbum já estavam prontos, senti falta de um tema que abrisse e fechasse o trabalho e consultei o Dori sobre a pertinência de algumas ideias musicais que eu tinha naquele momento. Ele complementou com as ideias dele, fez sugestões no que eu tinha escrito e, assim, nasceu nossa primeira parceria. 

Como foi essa nova ramificação da relação profissional de vocês? Foi um processo muito natural, sem que fosse necessário fazer um pedido ou atender a um convite. Eu acho legal quando as coisas fluem naturalmente assim, até porque, o Dori é um dos maiores compositores brasileiros e não precisa das minhas ideias para engrandecer a obra musical monumental que ele já escreveu. Se Deus quiser,virão outras oportunidades.

Gostaria que selecionasse, a seu bel prazer, uma ou duas faixas do disco e se detivesse sobre elas, falando do processo de criação, casos, etc...Bem, vou começar por "Saudades de Amanhã". Compus este tema em 2001, para o espetáculo "Saudades de Brasília", que produzi, na Sala Martins Penna do Teatro Nacional, integralmente com músicas minhas e no qual me lancei como compositor na capitalfederal, no dia 21 de abril, aniversário da cidade. A partitura ficou guardada na gaveta desde então, e resolvi fazer uma nova versão, rebatizada, para ser o carro-chefe do novo álbum. Este samba segue uma forma que eu já utilizei em outras músicas e que se baseia em um tema principal, bem melódico e escrito em tempo lento, seguido por um tema secundário mais vivo e em tempo rápido. O que cria um contraste interessante entre os ritmos do samba e do choro, entre o compasso quaternário e o binário característico desses gêneros.

Uma outra música sobre a qual gostaria de falar é "Perto do Tom". Compus este samba em parceria com o querido amigo Clodo Ferreira, em homenagem ao grande Antonio Carlos Jobim. Quando mostrei o tema ao Dori, no início dos trabalhos do "Saudades de Amanhã", ele entendeu o sentido que eu pretendia dar ao novo álbum, todo ele uma referência ao universo sonoro jobiniano. Como o Dori foi amigo do Tom e escreveu muito arranjo para ele, eu acho que o resultado que alcançamos reproduz aquela estética da Bossa Nova, com o piano econômico e as cordas harmônicas que eram a marca registrada do maestro soberano.

Estando radicado em Brasília, qual a sua ligação atual com os músicos mineiros (e, num espectro mais amplo, com a música mineira também)? Sou mineiro de Ubá e comecei por lá a minha formação musical, na verdade, guiado por minha mãe, Helena, professora de piano. Em Brasília, para onde mudei aos 12 anos de idade, cursei o Conservatório Lorenzo Fernandes e a Escola de Música de Brasília. Há alguns anos obtive o grau de Mestre em Música pela UnB, com dissertação sobre arranjo musical e foco no trabalho do Dori. Mas considero que a grande virada na minha trajetória musical ocorreu quando eu conheci pessoalmente o Toninho Horta em Brasília, na casa de amigos em comum. Mostrei minhas composições para o Toninho e ele me sugeriu gravar meu primeiro álbum em BH, indicando o estúdio Via Sonora, do saudoso Flávio Henrique. Em BH conheci muita gente legal graças ao Toninho: como o próprio Flávio, o Juarez Moreira, o Nenén Esdras Ferreira, a Mallu Praxedes, o Chico Amaral, a Marina Machado. Além das pessoas que o Flávio e o Juarez me apresentaram depois, o que proporcionou um convívio muito produtivo e amistoso durante as gravações do "Azulejando", no Via Sonora, sob a direção do Flávio Henrique. A música de Minas sempre foi muito forte em mim, sobretudo pelas influências do Milton Nascimento e do próprio Toninho Horta, o que é claramente perceptível em "Azulejando" e que reverbera também nos trabalhos posteriores, inclusive neste novo trabalho.

No mais, me fale como está sendo sua quarentena, que sentimentos te assolam, como pensa o mundo quando esse pesadelo passar.... Aqui em casa, nós estamos fazendo o isolamento social com muita disciplina. Estamos todos em trabalho remoto desde março de 2020 e com praticamente nenhum contato com amigos e familiares, o que tem sido, por vezes, bastante inquietante. Gravei o piano do "Saudades de Amanhã" em minha casa e toda a produção transcorreu remotamente, graças aos modernos recursos tecnológicos, e procuramos cumprir todos os protocolos sanitários. A pandemia está sendo um grande desafio para os brasileiros e para toda a humanidade, um momento muito difícil para toda a gente em todo o mundo. O título "Saudades de Amanhã", aliás, eu escolhi no contexto desta perplexidade, como algo que está retido entre o passado e o futuro: é sem dúvida uma distopia. Mas estou certo de que a vacina trará uma nova perspectiva e nos devolverá o presente, as relações com os amigos, os antigos projetos, a vida pública. E acredito que o Brasil retomará um projeto nacional, para os brasileiros, que nos distancie de uma posição subalterna e colonial. Eu fito meus companheiros, como dizia Drummond: estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.

 

Trajetória do pianista e compositor

Nascido em Ubá (Minas Gerais) e radicado em Brasília desde criança, Bigonha formou-se em piano pelo Conservatório Lorenzo Fernandes, no Rio de Janeiro, e é mestre em Música pela Universidade de Brasília. Tem quatro álbuns de música instrumental gravados: "Azulejando" (2004), "Urubupeba" (2010), "Anathema" (2018) e,agora, "Saudades de Amanhã" (2020).

O primeiro álbum, "Azulejando", foi vencedor do IV Prêmio BDMG de Música Instrumental. Neste trabalho Bigonha contou com a participação de grandes músicos mineiros, como Toninho Horta, Juarez Moreira, Marina Machado e Maurício Freire.

"Urubupeba", seu segundo trabalho autoral, foi arranjado e conduzido pelo maestro Dori Caymmi e finalista no 24º Festival da Música Brasileira, na categoria melhor arranjo. Segundo o compositor e poeta Paulo César Pinheiro, que assina a contracapa do CD "Urubupeba", a música de Bigonha representa o Brasil musical, latente, de jobiniana alma.

Em "Anathema", por seu turno, Bigonha explorou as possibilidades sonoras da formação piano trio para apresentar 12 temas inéditos, acompanhado por Jorge Helder, no contrabaixo, e por Jurim Moreira, na bateria.

Bigonha apresenta-se regularmente em público, em espaços de música como o Clube do Choro e o Feitiço Mineiro em Brasília, a Casa do Choro e o Espaço Cultural Arthur da Távola no Rio de Janeiro e em festivais, como o Guaramiranga Jazz & Blues, no Ceará.

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