“Orum” surge delicada e tocante e só posso pensar que seria um erro imperdoável se a faixa não fosse a escolhida para abrir “Atlântico Corpo”, novo disco da banda mineira Pelos, que volta com um trabalho de inéditas após um hiato de seis anos. A canção me leva à “Pale Blue Eyes”, do Velvet Underground, talvez pela sutileza cortante, talvez pela guitarra dedilhada – ou por qualquer outro motivo que nem sei dizer.

Há algo na música que não se explica, simplesmente é – ou parece ser – e “Orum” me chegou assim. “Tudo o que era raiva ficou pra trás/ Fez-se calma e se aquietou/ Serás mais rico que os reis/ Estás mais leve que o ar (e dormes, enfim)”, diz a letra de Thiago Pereira musicada por Robert Frank, que coloca sua voz em quase todas as faixas do álbum.

A Pelos, originalmente batizada de Pelos de Cachorro, começou sua história no Aglomerado da Serra em 1999, dando os primeiros passos na cena do rock independente de BH bebendo da fonte de estilos diversos como o soul, o blues, o jazz e o funk – é tudo black music, no fim das contas.

Essa mistura sonora está derramada nos álbuns “Memorial dos Abismos” (2008), “Olho do Mundo” (2012), “Paraíso Perdido nos Bolsos” (2016) e não falta em “Atlântico Corpo”, primeiro registro fonográfico da atual formação, que reúne Robert Frank (voz, guitarra e piano), Kim Gomes (guitarra), Heberte Almeida (guitarra, violão, piano e voz), Thiago Pereira (baixo) e Pablo Campos (bateria).

Terceira do disco, o blues “Lágrimas Brancas” tem ares melancólicos sem deixar de reagir ao racismo. “Da Serra ao Bonfim” joga com riffs rasgados e um pianinho entre um trecho e outro. É rock dos bons e ótimo convite para ver a Pelos ao vivo. Na próxima quinta-feira (18), a banda mostra as canções do novo trabalho no Cine Theatro Brasil Vallourec (detalhes no fim da matéria).

“Esse disco é como uma síntese da nossa trajetória. Ele faz um apanhado de diversas influências que a gente foi adquirindo pelo caminho. Desde o início, pensamos 'Atlântico Corpo’ como a representação dos nossos 23 anos”, comenta Robert Frank.

O álbum surge a partir de um projeto de 2020 adiado pela pandemia. Os quatro shows comemorativos às duas décadas de estrada da Pelos deram lugar ao álbum, que traz muito do contexto atual, já que foi gestado no isolamento dos dias pandêmicos.

As composições são resultado de imersões, no primeiro semestre do ano passado, em uma casa na região de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. As letras sobre racismo, resistência das vozes pretas e periféricas, experiências e relações pessoais e a vitalidade da cultura black brasileira (sempre com ode à herança africana) têm visceraildade e carga poética, e mostram a coerência do discurso da banda nesses mais de 20 anos.

“Acordávamos cedo, tomávamos café, dávamos um pulo na piscina e íamos nesse trabalho até ás 21h. Cada um levou suas ideias, jogava na roda. Foi um processo muito coletivo”, pontua Frank. Esse mergulho criativo trouxe um tom de esperança e dias melhores ao disco, “de vencer esse ódio”, como diz Frank, que concilia a música com a carreira de ator - entre os últimos trabalhos, ele interpretou Missiê Jack na deliciosa série “Hit Parade”, produção original do Canal Brasil.

“Festa do Corpo Banto” anuncia novos tempos, “o que foi não mais será”, conforme a letra de Thiago Pereira, autor dos versos de outras seis faixas álbum, e Heberte Almeida, cuja caneta aparece também em “Um Rio” e “Etérea”. “Atlântico Corpo”, que tem participação especial de Michelle Oliveira, cantora das bandas Cromossomo Africano, Dibantu e Marimbando, em três faixas, sai depois de três singles: “Lágrimas Brancas”, que ganhou clipe dirigido por Gabriel Martins, da Filmes de Plástico e diretor do premiado “Marte Um”, filme brasileiro escolhido para tentar uma vaga no Oscar 2023, “Dela em Mim” e “Da Serra ao Bonfim”, homenagem à travesti cearense Cintura Fina, célebre personagem da capital mineira nas décadas de 1960 e 70 e uma das inspirações para a canção.

“Atlântico Corpo” foi gravado majoritariamente ao vivo no estúdio Ilha do Corvo, do músico e produtor mineiro Leonardo Marques, parceiro do quinteto neste novo projeto. Com equipamento e microfones antigos à disposição, Robert Frank aponta que o disco carrega certa característica sonora mais vintage.

“Orum”, por exemplo, tem uma guitarra de 1910 plugada em um amplificador dos anos 1940. A ideia de registar o álbum ao vivo foi de Marques. “Quando ele propôs, achamos o máximo. É algo difícil de fazer, mas a gravação acabou trazendo essa energia ao disco. A base dele é toda ao vivo”, ressalta o músico.

Sete das 11 faixas de “Atlântico Corpo” têm mais de quatro minutos e isso diz muito sobre esse trabalho e o fato de a banda não priorizar agradar os ouvidos mais apressados, tão acostumados com o bombardeio de canções e estilos diversos nas plataformas musicais. O novo álbum da Pelos chega em tempos oportunos, pois deve ser escutado não só nessas noites frias, mas também nos dias em que o sol desavergonhadamente brilha para depois se esconder e dar lugar à chuva de novembro.

“Tema Para Um Homem Em Queda”, música embalada no piano e no baixo, fecha o álbum (não haveria maneira mais certeira) e é a síntese perfeita dessa grata novidade que a Pelos recém lançou às plataformas digitais. Delicada, para depois romper em guitarras distorcidas e vigorsosas, ela dá um aviso aos desavisados: “O futuro será nosso ou não será o futuro/ O futuro será negro ou não será”.

Show no Cine Theatro Brasil marca o lançamento de “Atlântico Corpo”

A banda Pelos lança “Atlântico Corpo” na próxima sexta-feira (18), às 20h, no Teatro de Câmara do Cine Theatro Brasil Vallourec (av. Amazonas 315 – Centro). Os ingressos estão disponíveis na plataforma Eventim e custam R$30 (inteira) e R$15 (meia).

Segundo Robert Frank, o álbum será reproduzido no palco com o máximo de fidelidade à gravação original. No palco, o quinteto terá as participações de Carol Abreu (congas), Leonardo Alves (caixa de folia, afoxé, caxixi, ganzá, queixada, cowbell e jam block), Luã Linhares (piano), Michelle Oliveira (voz), Jonatha Maz (trombone), Juventino Dias (trompete) e Marcelo Kavalim (saxofone) . “Vamos tocar o disco inteiro e teremos convidados para reproduzirmos o ambiente do disco. Serão 13 pessoas no palco”, ele conclui.

Em 2023, a Pelos continuará mostrando as canções de “Atlântico Corpo” em shows celebrativos da trajetória do grupo, além de inaugurar uma exposição com fotos, flyers e artes do passado da banda.