No coração de Belo Horizonte, um estabelecimento resiste ao tempo. A imagem pode parecer um lugar-comum, mas talvez seja difícil encontrar outra para entender o Café Nice. Ao longo de 86 anos, o espaço viveu seus momentos de glória – tendo Juscelino Kubitschek como cliente fiel e horário de funcionamento que varava as noites –, sobreviveu à pandemia e quase encerrou suas atividades no ano passado.

“Foi um período muito ruim, o centro estava cada vez mais esvaziado, a clientela foi sumindo… Fiquei muito desanimado, até pensei em fechar”, recorda-se Renato Moura Caldeira, de 68 anos, que comanda o estabelecimento ao lado do irmão, Tadeu, de 72 anos. 

Felizmente, os 51 anos trabalhando ininterruptamente no local lhe renderam muitas amizades. “Um amigo ficou sabendo da possibilidade de o café fechar e me disse: ‘você não vai parar, não. Vou te apresentar algumas pessoas que vão te ajudar’”, lembra. Nessa oportunidade, Caldeira conversou com o então vereador Gabriel Azevedo e com o empreendedor Rafael Quick, um dos responsáveis pela revitalização do Mercado Novo.

Renato Caldeira. Foto: João Godinho/O TEMPO

“Eu e meu irmão nos reunimos com os dois, que decidiram entrar com força total para me ajudar. O Gabriel foi em busca de um parceiro e conseguiu apoio da CDL, e o Rafael entrou como forte divulgador na imprensa”, diz. Desse encontro, surgiu o Abrace o Nice, campanha de financiamento coletivo que arrecadaria fundos para a revitalização do espaço. 

Para arrecadar fundos, o projeto vendeu um kit contendo camisa, boné, xícara, café especial e uma sacola de pano, todos com a marca do café, pelo valor de R$ 349. A empreitada deu certo. A meta inicial era arrecadar R$ 30 mil em um mês. Mas, em apenas 10 dias, a campanha conseguiu quase R$ 40 mil com a venda dos produtos.

“Fiquei muito lisonjeado em ver a força que os amigos do Nice têm”, emociona-se Caldeira. Com o dinheiro, há dois meses, os irmãos iniciaram o projeto de revitalização do espaço, que incluiu a impermeabilização da laje onde havia goteiras; troca da iluminação; pintura do lado de dentro e de fora; melhoria nos balcões e até o conserto de uma geladeira.

“Ela estava sem funcionar há cinco anos, porque a porta tinha caído. Agora, já está ótima novamente”, celebra. Ainda estão previstas a troca dos ventiladores, da placa externa do café e a criação de um espaço de venda de souvenirs da campanha. 

Caldeira reforça que o trabalho não se trata de uma reforma, mas de ajustes pontuais. “Vamos melhorar as coisas que estão deterioradas, mas preservar o mesmo ambiente, mantendo os azulejos, por exemplo”, destaca.

Cardápio clássico

Tirando isso, nada muda – especialmente o cardápio, que pode ser consultado nas três placas penduradas atrás do balcão. 

Há itens que estão lá “desde sempre”, como o cafezinho coado na flanela, chá, torradas, ovos quentes e gemada, uma batida de leite, gemas de ovos de galinha, açúcar e canela. “Muita gente vem aqui só para tomá-la, especialmente no inverno”, comenta o proprietário.

O creme de Maizena com ameixa e o frapê de coco são outros clássicos. “O frapê era vendido no Café Pérola [vizinho do Café Nice, fechado em 1997] e o colocamos no cardápio porque a procura continuou”, conta.

Encontro de gerações

Além de emblemático, o Café Nice funciona como um espaço de encontro de gerações. A reportagem de O TEMPO esteve no local, em uma tarde de terça-feira, e conferiu um movimento rotativo de clientes, a maioria idosos, mas também de jovens. O estudante de design gráfico Benício de Castro Ribeiro, de 20 anos, levou a amiga de Londrina Luiza Merighe Fruzeri, de 18 anos, para comer o famoso creme de Maizena.

“Conheço o Café Nice porque meu pai é biógrafo e me conta um pouco sobre a história da cidade. O café faz parte disso e precisa ser preservado, tanto por ser parte da arquitetura quanto da cultura da cidade. E a cultura também vem da comida, como o creme de ameixa, marca registrada daqui”, diz Ribeiro.

Luiza, por sua vez, estuda arquitetura e urbanismo e ficou feliz de poder ver um espaço que preserva características do passado. “Aqui é realmente um pedaço de história ainda vivo. Eu amo azulejos, e aqui eles são lindos. A estrutura do café é muito bonita. Você consegue ver a história”, comenta. 

E são pessoas como o médico aposentado José Mauro Avelar, de 83 anos, que mantêm o Café Nice em pleno funcionamento. Ele frequenta o estabelecimento há mais de 60 anos e presenciou muitas histórias encostado nos balcões do espaço. “Eu era bancário e tinha uma sala em cima do Café Nice. Vi muitos políticos que se elegeram passarem por aqui. Havia um dogma: para ser eleito, o político precisava passar antes no Café Nice, isso desde a época de Juscelino Kubitschek”, recorda-se.

Naquela época, Avelar frequentava o café diariamente. Devido à idade, suas visitas foram reduzidas de duas a três vezes por semana. “Minhas maiores amizades foram formadas aqui. Inclusive anestesiei muitos frequentadores do Café Nice”, conta o anestesiologista. Seu maior pedido? “Um cafezinho sem açúcar.”

História do Café Nice

A história do Café Nice começou com uma ida ao Rio de Janeiro. O comerciante Heitor Resende passava as férias na capital fluminense, e passeando pela avenida rio Branco, no centro da cidade, descobriu um estabelecimento que era o point da boemia carioca. Tratava-se do Café Nice, que funcionou até 1954 como ponto de encontro de sambistas, compositores, jornalistas e escritores.

“Ele frequentou lá, gostou e quis trazê-lo para Belo Horizonte. Então, alugou a loja, montou a lanchonete e colocou o nome de Casa de Chá e Leitaria Nice”, conta o proprietário do Café Nice Renato Moura Caldeira. Resende trabalhou à frente do negócio por dois anos, mas se cansou, e o vendeu para um dentista, que, por sua vez, repassou o café para João Caldeira, tio do proprietário do Café Nice. 

O tio chamou Afonso Caldeira, pai de Renato, de Barão de Cocais, para vir para a capital trabalhar no café. “Meu pai vendeu o comércio dele no escuro e veio para cá. Deu certo, e os dois trabalharam por dez anos, até que meu tio se cansou, e meu pai assumiu tudo. Aqui, ele conheceu minha mãe, e juntos tiveram 10 filhos, dos quais, seis homens. Todos eles já passaram pelo café em algum momento, e, agora, estamos eu e o Tadeu”, diz o proprietário.

 

Em seu auge, café chegou a ter 28 funcionários, com horário de funcionamento de 6h a meia-noite. Quando foi inaugurado, o café tinha mesas e cadeiras que ficavam lotadas. Em 1979, elas foram substituídas por um balcão em formato de U, e os assentos foram retirados. A ideia era otimizar o tempo dos clientes ali. “No auge do café, meu pai vendia até 3 mil cafezinhos por dia. Mas o movimento foi caindo, o centro foi se esvaziando… Em 2020, eu tinha nove funcionários, hoje, cinco”, conforma-se Caldeira.

Mesmo com um cenário bastante diferente dos tempos áureos, Renato Caldeira fala com orgulho sobre o passado ilustre do Café Nice. “Na época do meu pai, os políticos não apenas passavam por aqui, eles frequentavam o café”, destaca. “O JK, por exemplo, saía a pé da prefeitura e descia a Afonso Pena até chegar aqui. Com ele vinham nomes como José Maria Alkmin, Pedro Aleixo, Milton Campos… Também vinham Tancredo Neves e Itamar Franco.”

Entre os mais recentes, já passaram por ali Fernando Collor, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer. “Dos presidentes, só não vieram Fernando Henrique e Bolsonaro”, observa. No cenário mineiro, o ponto também segue prestigiado. “Praticamente todos os prefeitos e governadores já passaram por aqui. O Zema, por exemplo, lançou aqui sua campanha de 2018, que o elegeu governador”, completa.

Parte da classe artística e intelectual também frequentava o café, como Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade. “Não cheguei a pegar esta época, mas, dentre os artistas que já vi aqui, estão Gonzaguinha, Aguinaldo Timóteo, Nelson Gonçalves… Até o time dos Santos já passou por aqui”, conta.

Importância histórica

Na avaliação do historiador Aulus Quites, o Café Nice faz parte da identidade cultural mineira. “O local foi inaugurado em 1939, quando BH tinha pouco mais de 40 anos de fundação, era uma cidade recém-feita. Com isso, acompanhou o crescimento e as transformações da capital, especialmente da região central”, aponta.

A forte relação do mineiro com o café também contribuiu para a efervescência do espaço, que se tornou ponto de encontro de personalidades. “O Café Nice se destacou não apenas pela bebida, mas pelo ambiente de convívio, como um espaço vivo”, salienta o professor de história do Colégio Arnaldo.

Além de sua importância histórica, o café simboliza ainda resistência em uma cidade marcada pela perda de referências urbanas. Exemplo mais recente disso foi a demolição da Padaria Savassi, estabelecimento que deu nome à região Sul da capital.

“Abrir mão do patrimônio é também abrir mão da identidade: quando rasga a história, rasga junto o sentimento de pertencimento, que permite a junção entre cidade e sociedade”, analisa o historiador. Para ele, espaços como o Café Nice são “lugares onde a mineirice se encontra”, pontos vivos de uma história que resiste ao apagamento. “Quando se revitaliza um espaço, se reaviva a memória”, conclui.

SERVIÇO

Café Nice

Endereço. Avenida Afonso Pena, 727, centro.

Horário. Segunda a sexta-feira, de 8h às 19h; sábado, 8h às 13h; domingo, fechado