Quando a versão do diretor Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) para “Boca de Ouro”, texto de Nelson Rodrigues de 1959, chegou pela primeira vez aos cinemas, em 1963, o nome de Daniel Filho aparecia em destaque nos créditos – afinal, ele dava vida a Leleco, um dos personagens centrais da trama. Na mais nova leitura para aquele que já é um clássico da dramaturgia brasileira, Daniel Filho volta a cunhar seu nome, só que, desta vez, como diretor da empreitada que, aliás, entra em cartaz hoje, em todo o país (BH inclusa).
Na verdade, é a terceira vez que a história do assassinato do chefe do jogo do bicho Boca de Ouro é levada às telas: em 1990, Walter Avancini dirigiu outro filme, com Tarcísio Meira encabeçando o elenco, junto a Luma de Oliveira, Claudia Raia, Hugo Carvana e Maria Padilha.
Desta vez, o célebre personagem (que também já foi interpretado várias vezes no teatro, mais recentemente por Malvino Salvador) ganha o rosto de Marcos Palmeira. Estelar, o elenco se completa com Malu Mader, Fernanda Vasconcellos, Lorena Comparato, Silvio Guindane, Thiago Rodrigues, Guilherme Fontes e Anselmo Vasconcelos, para citar alguns.
Guindane é o jornalista Caveirinha, que pesquisa a vida do contraventor de Madureira a fim de ter material que sirva de substrato para uma reportagem sobre a vida da lendária figura que ganhou o apelido após trocar todos os dentes por próteses em ouro. Malu Mader é Guigui, a personagem a qual o autor incumbiu de colocar em repasse as três versões de um assassinato cometido por Boca, envolvendo o casal Celeste (Lorena Comparato) e Leleco (Thiago Rodrigues, assumindo as vestes do personagem que Daniel Filho fez lá atrás).
Como se sabe, as versões do crime variam a partir das informações fornecidas por Guigui sobre Boca. Antes de saber que ele está morto, ele, na construção dela, surge como um homem cruel. Ao saber da morte, Guigui passa a apresentá-lo como um homem bom, que, na verdade, estaria sendo vítima de uma extorsão. Já na terceira, Boca é apresentado como um assassino de mulheres.
Ao Magazine, Lorena Comparato contou que as filmagens aconteceram em 2018, e que, antes da estreia em circuito nacional, o trabalho rodou alguns festivais, já tendo arrebatado vários prêmios – como Celeste, ela, por exemplo, foi premiada no Festival de Cinema de Montevidéu e no Inffinito: Festival de Cinema Brasileiro de Miami.
Rememorando a fase de preparação, Lorena conta que todo o elenco assistiu ao filme de Nelson Pereira dos Santos. E embora ressalte a participação de um coach (Sergio Pena) para a construção da sua personagem, Lorena (que, vale dizer, é filha do ator e teledramaturgo Doc Comparato e irmã da também atriz Bianca Comparato) narra que Daniel filho sabia tanto o que queria que, desde o início, o trabalho se desenvolveu em fluxo contínuo e espontâneo.
“Na preparação, fizemos várias leituras, todos os atores. Foi uma forma de (ele) nos unir. Já os ensaios, foram extremamente teatrais, também todo mundo junto, numa sala, repassando o texto muitas vezes”, conta. Marcos Palmeira também acrescenta que Daniel Filho teve um momento individual com cada ator.
Referência. Em uma apresentação coletiva do filme, online e aberta ao público, Malu Mader contou que Nelson Rodrigues talvez tenha sido o autor que mais leu até aqui. “Fazer um texto dele é um sonho de toda atriz que conhece os clássicos (da dramaturgia brasileira). Eu sempre almejei”, entrega ela, que, ao contrário de Lorena, que começou a estudá-lo ainda adolescente, só foi se enfronhar neste universo mais tarde, por “culpa” do marido, o músico Toni Belotto, do Titãs. “Tenho até vergonha de confessar, inclusive porque fiz Tablado (referindo-se à célebre escola de atores carioca) e, não sei por que motivo, não tinha lido. Mas o Toni, por sua vez por influência do Marcelo Fromer (guitarrista do Titãs, falecido em 2001), começou a ler. E eu, do lado, ficava vendo-o às gargalhadas – e quando isso acontece, todo mundo sabe, contagia. Fui ler também e, a partir daí, virei uma apaixonada radical”, explica.
Sarcástico crítico da sociedade
O humor de Nelson Rodrigues, seus leitores bem sabem, é edificado sobre uma crítica mordaz dos costumes da sociedade, em particular, da classe média, com seus valores, recalques e religiosidade nem sempre coerente com os atos praticados. “Ele possuía uma antena inacreditável, tanto é que segue sendo atual. Neste texto, vê-se todo mundo corrompido, fazendo tudo por dinheiro. A sordidez humana inteira ali. E o espantoso é que, hoje, só mudaram alguns personagens, o bicheiro virou (tempos depois) o traficante e, agora, o miliciano”, prossegue Malu.
Marcos Palmeira endossa: “Acho que o público vai encontrar conexões com o mundo atual, essa coisa das milícias, que está explodindo hoje, em 2020. Mais uma vez Nelson Rodrigues acertando uma previsão”. Mas, justamente por colocar o dedo em feridas, Malu Mader reconhece que Nelson provocava reações extremadas, por vezes, de profunda ojeriza: “Realmente ele não escrevia para agradar, (suas palavras) saíam das entranhas”. Por outro lado, ela crava: “Ele é nosso Shakespeare, tem que ser visto”.
Fernanda Vasconcellos concorda: “Os personagens de Nelson Rodrigues têm muitas camadas, entrelinhas. Há muito de não dito em cena, e isso é o que dá mais prazer (a um ator). Na verdade, é um prato cheio”. Ela também entende que, com o filme, Daniel FIlho conseguiu capturar a essência do dramaturgo, “sem tentar impor sua assinatura como diretor”. “Acho que está aí o pulo do gato, o filme fica do tamanho do que é o Nelson”, completa. Em relação a eventuais comparações com os filmes anteriores, Palmeira relativizou. “O público tem todo direito de fazer comparações e achar um melhor que o outro. Neste momento que a cultura está sendo tão desvalorizada, o importante é ser avaliado, reconectado com os tempos atuais”, diz. E faz um último apontamento: “Também acho legal o fato de ser um filme de arte, mas que tem grande chance de se tornar também popular”.
Relançamento do livro
Considerado um ícone do teatro brasileiro moderno e uma das peças mais importantes da obra de Nelson Rodrigues, o texto de "Boca de Ouro" acaba de ganhar uma nova edição lançada pela editora Nova Fronteira. O volume, que celebra os 60 anos da primeira encenação do espetáculo, tem posfácio de Elen de Medeiros, professora de Literatura e Teatro da Faculdade de Letras da UFMG, e orelha assinada por Marcos Palmeira, protagonista do filme homônimo que estreia nesta quinta. O livro já está à venda nas livrarias presenciais e virtuais e custa R$ 39,90.