A imagem clássica de um escritor na década de 1950 é a de um homem mergulhado em seus pensamentos diante da máquina de escrever. No caso do mineiro Fernando Sabino, ela é a pontinha do iceberg de um homem multifacetado. Ao lado do autor de obras fundamentais como “O Encontro Marcado” e “O Grande Mentecapto”, há também o recordista sul-americano de natação, o baterista dedicado de jazz tradicional, o dono de duas editoras consagradas e o filantropo.

Com o centenário de Sabino batendo à porta, a ser celebrado nesta quinta-feira, filhos, editores e pesquisadores chamam a atenção para uma trajetória que foi além das palavras. O que mais sobressai é o escritor que viveu intensamente a relação com a capital mineira. Não por acaso, ele morou por muitos anos no coração de BH, na praça da Liberdade, numa casa onde depois foi construída a sede da Uemg. A poucos passos, portanto, da estátua dele colocada na entrada do anexo da Biblioteca Pública Estadual.

“Fernando nadava no Minas Tênis Clube e, à noite, ficava na biblioteca até ler um livro inteiro”, assinala Cristina Souza, principal pesquisadora sobre a vida e a obra de Sabino. “Ele é, basicamente, da segunda, terceira geração da cidade. Pegou a Belo Horizonte ainda do iniciozinho, com aquele jeitinho de roça que queria ser moderna. Mesmo quando foi morar no Rio de Janeiro, a cidade continua sendo importante para ele, algo que transparece na literatura. Sabino saiu de Minas, mas Minas não saiu dele”, registra.

Como doutoranda da Faculdade de Letras da UFMG, Cristina recorre muito ao Acervo de Escritores Mineiros da universidade, onde estão vários documentos e objetos relacionados ao escritor. Lá foi montada uma sala tal e qual Sabino tinha em casa, com a velha bateria a chamar atenção. “Ele teve contato desde cedo com a música e, de maneira amadora, fazia participações em grupos de jazz no Rio. Gostava especificamente do jazz tradicional americano, feito até a década de 1950”, destaca a pesquisadora.

Esse contato musical teve frutos legítimos, estampados na filha e cantora Verônica Sabino. “Papai foi um estímulo para eu ser quem eu sou hoje em dia. Eu teria enveredado (pela música) de qualquer maneira, mas tê-lo tido como meu pai me deu um chão”, analisa a intérprete de “Demais”, que começou a estudar piano justamente para poder tocar com Sabino a quatro mãos. “Ele chegava em casa à noite e abria o piano para tocar jazz. Tocava de ouvido, sempre foi autodidata”, lembra Verônica, herdeira do antigo piano da família.

“Louco” por Beatles, Pink Floyd e Cat Stevens, Sabino abastecia a filha sempre com referências, especialmente de cantoras. “Se você quer cantar, não pode deixar de ouvir tal e tal, levando para mim fitas cassete de Aracy de Almeida, Ella Fitzgerald e Billie Holiday. Realmente foi a minha faculdade de música. Tinha uma cultura musical muito ampla e afinada. Era um apaixonado por artes”, recorda. Verônica assistiu a “Help!” (1965) num cinema de Londres, ainda pequena, levada pelo pai, então adido cultural na Inglaterra.

Aquele contato com o quarteto de Liverpool marcou profundamente a cantora. “Sou apaixonada por Paul (McCartney) até hoje. A primeira canção conhecida que gravei (‘Demais’) foi uma versão de ‘Yes Is It’, de (John) Lennon e Paul. São círculos que vão se fechando e fazendo sentido em nossa vida”, constata Verônica. Ela se acostumou a ver o pai no camarim após os shows. “Ia direto falar com os músicos, dizendo que o baixo estava alto ou que foram maravilhosos. Estava sempre na primeira fila”.

Para José Mauro da Costa, professor de literatura e idealizador do projeto Livro de Graça na Praça, Fernando Sabino era um “homem de mil instrumentos”. Ele lembra um caso relatado a ele pelo escritor, quando chamou a atenção do ator Broderick Crawford, dono de um bar em Nova York. “Fernando estava com Vinicius de Moraes num happy hour e conversavam em inglês. Um baterista começou a tocar, e Sabino criticou, dizendo que o músico estava estourando os tímpanos dele”, conta.

Um sujeito alto e forte, parecido com um leão de chácara, se aproximou da dupla e se apresentou como dono do bar. Era Crawford, ator conhecido por filmes como “Desejo Humano” (1954) e “Gatilho Relâmpago” (1956). “Ele falou que queria ver o Fernando tocando, já que se achava melhor que o baterista do lugar. Foi como chamar um sapo para a água, com Fernando caprichando e sendo aplaudido. Crawford disse que a despesa seria por conta dele, e eles acabaram se tornando amigos”.

Costa ouviu essa história no único encontro que teve com o escritor, no início da década de 1970. Ele tomava um chope num dos bares do edifício Maletta, na Rua da Bahia, quando viu Sabino passando com “uma maleta do tipo 007”. O autor tinha acabado de lançar o infantil “O Menino no Espelho” e estava em Belo Horizonte para divulgar a publicação. “Era estudante de Letras e corri atrás dele. Fiquei tietando muito até que falei que o deixaria à vontade e entraria num bar para tomar um café”.

Sabino respondeu prontamente: “Eu vou com você, mas só se for café com leite sem leite”, referindo-se a uma crônica de sua lavra, sobre um freguês que, ao ver uma placa escrita “leiteria’, entra num estabelecimento e pede um café com leite. Só que o leite depende de uma improvável vinda do leiteiro. Ao ouvir as explicações do dono, ele pede um “café com leite sem leite”. O encontro “não marcado" com Costa, como ele gosta de definir, mostra a solicitude que sempre acompanhou o escritor.

Outro filho de Sabino, Bernardo, não se esquece do lado filantropo do escritor. “Meu pai dava cadeira de rodas para paraplégico na rua e cobertor para mendigos. Ele gostava de pessoas simples e se esquivava de famosos. Não era marketing. Era o jeito dele mesmo, abdicando de várias coisas devido à ideologia dele. Como pai, ensinou-nos princípios como honestidade, preservação da natureza e justiça social. Sabino nos ensinou a olhar da melhor maneira para o mundo”, salienta.

Ele está à frente do Instituto Fernando Sabino, estimulando ações culturais em torno do autor, incentivando o acesso não só à bibliografia do pai como também ao homem múltiplo que ainda poucos conhecem. “Papai foi nadador do Minas, ganhando o sul-americano nos 400 m no nado costas. Ele se vangloriava de que, como a prova foi extinta depois, o recorde dele permaneceu até hoje. Papai também criou duas editoras, a Editora do Autor e a Sabiá, que se tornou uma das maiores do Brasil”.

Cristina Souza não tem dúvidas sobre a importância do Sabino editor. “Ele contribui muito para o mercado editorial. Como morou nos Estados Unidos, trouxe vários contatos de lá e publicou grandes sucessos da época. E quando o catálogo da editora foi vendido para a José Olympio, estavam todos os grandes escritores modernistas brasileiros”, conta a pesquisadora, que mergulhou na obra de Sabino atraída pela linguagem comunicativa e pelo “jeito alegre de ver a vida e tirar poesia das coisas simples do dia a dia”.