Transformações

Como a cultura tornou-se um motor de transformações no centro de BH

Especialista lembra que novas dinâmicas se desenrolam há mais de 30 anos

Por Alex Bessas
Publicado em 22 de abril de 2024 | 06:30
 
 
 
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As obras que tomam a região central de Belo Horizonte com o programa Centro de Todo Mundo, capitaneado pela prefeitura da capital, e as novas gerências que assumiram, nos últimos dias, a administração dos edifícios históricos CentoeQuatro e Serraria Souza Pinto, que integram o Conjunto Paisagístico e Arquitetônico da Praça da Estação, são expressão de um contínuo processo de mudança que ocorre na região há décadas. É o que defende a arquiteta e urbanista Samira Houri.

Visão lateral da fachada da Serraria Souza Pinto
Visão lateral da fachada da Serraria Souza Pinto

Em meados de 2016, interessada nas novas dinâmicas que tomavam a rua Sapucaí, no limiar entre a Floresta e o centro da capital, Samira passou a olhar com lupa como essa nova ocupação da via. O tema foi analisado em sua monografia de pós-graduação, na qual constatou que esse processo de transformação teve início ainda no século passado. “É um processo que não está dissociado dos movimentos culturais urbanos presentes neste território”, diz, lembrando que diversos equipamentos foram sendo implantados no entorno da praça da Estação e ela foi reformada. “Um movimento que começou por volta da década de 1990”, estabelece, citando, por exemplo, a abertura do Centro Cultural da UFMG, inaugurado em 1989, e da própria Serraria Souza Pinto, aberta dez anos mais tarde, além do Museu de Artes e Ofícios, esse já nos anos 2000.

Além de toda diversidade de equipamentos culturais instalados na região do chamado “baixo centro” – entre eles, o Teatro Espanca! e o então Cine CentoeQuatro, hoje Complexo CentoeQuatro – outras ações de ocupação do espaço público aconteceram, ressignificando o entorno, lembra Samira. Em 2007, por exemplo, o Duelo de MCs começava a acontecer, migrando, mais tarde, da Praça da Estação para o viaduto Santa Tereza. Três anos mais tarde, nascia a Praia da Estação, movimento especialmente relevante referente à luta pelo direito ao livre uso e apropriação dos espaços públicos da cidade, que ganhou endosso pelo fortalecimento do Carnaval belo-horizontino. Tudo isso, avalia a arquiteta e urbanista, contribuiu para que o centro ganhasse importância no cenário cultural da cidade.

Balaústres tornaram-se um dos símbolos da rua Sapucaí
Balaústres tornaram-se um dos símbolos da rua Sapucaí

Samira admite ser difícil determinar o papel de cada segmento da sociedade nesse fenômeno. “Existe essa ocupação dos agentes e movimentos culturais, mas também existe a presença da administração pública como indutora desse movimento – a Serraria Souza Pinto, por exemplo, era administrada pela Fundação Clóvis Salgado (FCS), ligada ao governo do Estado, antes da concessão à iniciativa privada”, lembra. “E ainda temos os empresários e empreendedores. “Na Sapucaí, a título de ilustração, houve a substituição de um tipo de estabelecimentos, antes majoritário naquela via, por outro, mais voltados para o perfil de restaurantes e bares”, lembra, situando que tal movimento foi inaugurado pela abertura da Salumeria Central, em 2012, sob a liderança do chef italiano Massimo Battaglini em parceria com o videoartista e cineasta Eder Santos. “E esse movimento continua acontecendo, agora se irradiando pelas ruas adjacentes”, assinala.

Novas ocupações

Anos depois da ocupação da Sapucaí, quando a região do Viaduto Santa Tereza já havia se estabelecido como um reduto cultural da cena do hip hop e a Praça da Estação o palco de grandes manifestações políticas, sociais e culturais, uma nova onda de empreendimentos fez que o Mercado Novo, a partir de 2018, e a Galeria São Vicente, há cerca de 2 anos, ambos na região central, se tornassem parte da engrenagem de uma tendência mundial: a reciclagem e a reutilização de lugares tidos como degradados.

“A crise da energia dos anos 70 e o aumento da consciência ambiental mudaram o paradigma de construção, destruição e nova construção”, disse o arquiteto e urbanista Leonardo Castriota, em entrevista a O TEMPO. Professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele observa que o fenômeno costuma ser catapultado pelas “classes criativas”.

Ao todo, o terceiro andar possui 47 empreendimentos, em 142 lojas
Foto registra movimento no terceiro piso do Mercado Novo

Exemplos não faltam, sendo um dos mais emblemáticos a região de Soho, em Nova York, que foi “ocupada por artistas nos anos de 1970 e rapidamente ressignificada” – um reduto que ilustra também a ambiguidade dessa dinâmica: “É um processo que traz nova vitalidade e uma nova atratividade econômica, mas, às vezes, graças aos pioneiros – esses jovens que descobriram novas fronteiras urbanas –, os operários que estavam lá antes deles acabam sendo expulsos do lugar, que começa a ser valorizado e se torna mais caro – temos, então, a gentrificação”.

Para evitar possíveis efeitos indesejáveis associados a essas novas dinâmicas, como a gentrificação, Samira Houri defende que esse processo de transformação da malha urbana seja amplamente debatido em sociedade. “É necessário sempre que haja a participação da população e se debata o uso destes espaços. É importante, portanto, ouvir todas as partes envolvidas, como os moradores e os comerciantes locais – o que não significa se fechar para novos empreendimentos, mas compatibilizar vontades”, aponta, dizendo ser papel do poder público mediar este debate.

“Me parece que a Prefeitura de Belo Horizonte não tem fugido deste desafio no contexto do programa Centro de Todo Mundo, que, inclusive, prevê moradias populares na região, o que acaba freando a especulação imobiliária”, informa.

Fenômeno global

A arquiteta e urbanista Samira Houri, pós-graduada em planejamento ambiental urbano, lembra que essa força gravitacional que o centro belo-horizontino parece exercer sobre os setores culturais, atraindo-os para a região, está alinhada a um fenômeno de abrangência global. “Durante muito tempo os centros das grandes cidades foram os territórios mais importantes dos municípios. Mas, com o tempo, eles perderam valor à medida que as cidades se expandiram, as pessoas foram morar mais longe”, lembra, citando que essas regiões foram afetadas, ainda, pela popularização dos condomínios, que trouxeram outra proposta de vida nas cidades.

Galeria São Vicente é uma das grandes incetivadoras da retomada do movimento à praça.
Movimento na Galeria São Vicente, no entorno da praça Raul Soares

“Com isso, os centros passam a ser vistos como lugares decadentes, onde as pessoas não transitam tanto. Contudo, estamos falando de territórios que geralmente possuem boa estrutura, com acesso ao transporte público, atraindo pessoas do setor cultural e empresários, que percebem uma oportunidade nessas áreas de grande capilaridade”, pontua ao explicar o movimento de cíclica ocupação do tecido urbano.

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