Logo nos primeiros segundos, o baixo bem marcado, a bateria rápida e a entrada barulhenta de uma guitarra anunciam a porrada que vem pelos próximos 40 minutos de “Ponto Cego”, novo álbum da banda de hardcore Dead Fish. Sem citar nomes, o grupo pinta um retrato político, social e econômico de um país que vive um período conturbado de sua história.
O discurso é afiado, direto e toca em questões relativas à democracia e aos acontecimentos que separam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) da eleição de Jair Bolsonaro (PSL), em outubro passado. Rodrigo Lima (voz), Marcão Melloni (bateria) e Ric Mastria (guitarra e vocais), que também fez as vezes no baixo para a gravação do álbum, mandam seu recado com raiva, deboche e escracho. O trio assina todas as composições com a colaboração em quase todas elas do músico e parceiro Alvaro Dutra, e, em três canções, de Alyand, baixista que deixou a banda neste ano.
A tradicional família brasileira, o dito cidadão de bem, “a cumplicidade das panelas”, a ignorância e o mito da caverna de Platão, Pablo Picasso e sua obra-prima Guernica, o significado do punk, o filósofo Michel Foucault, quadrinhos... A lista de influências do processo de composição do álbum gira por aí.
“É um álbum conceitual que trata, basicamente, de poucos assuntos. Quisemos falar sobre a situação macro dentro de um microcosmo”, afirma o vocalista Rodrigo Lima ao Magazine. O termo ponto cego, inclusive, aparece em todas as músicas e acaba por amarrar o disco. “Botar a palavra em todas as letras era algo que nos instigava”, completa.
“Ponto Cego” é, também, uma volta às raízes mais punks e pesadas da banda: “Isso foi pensado, deliberado. É um disco mais orgânico, com melodia das antigas”, comenta.
O disco. “Ponto Cego”, oitavo disco de estúdio da banda capixaba que nasceu em 1991 e colocou seu nome no hall dos principais grupos de hardcore do país, senão o maior, foi gravado em março no Rio de Janeiro. Produzido por Rafael Ramos e mixado por Bill Stevenson, figura ilustre no meio musical, baterista da banda punk Descendents e ex-baterista do Black Flag, o disco marca o retorno do Dead Fish à gravadora Deck. Flávio Grão assina a ilustração da capa.
"Vivemos uma distopia bizarra não só no Brasil. Isso vem muito com a internet, com um pensamento raso, essa coisa de ler um livro pela capa, não ir a fundo em nada. É o momento de ser panfletário. Não podemos deixar de nos posicionar."
A jornalista, escritora e ativista canadense Naomi Klein foi, segundo Rodrigo, uma grande influência para o processo de feitura do álbum. O título da faixa “Doutrina do Choque” vem, inclusive, de um dos livros de Klein, “A Doutrina do Choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre” (2007). A música critica o neoliberalismo e a política de privatização de estatais.
Em “Etiqueta Social”, estrondosa e urgente como um vômito, Rodrigo estoura a garganta e pede atenção às regras de convivência social em um minuto do mais sujo punk rock: “Elevadores são feitos pra subir/ As minorias não vão poder usar/ Escadas e entrada de serviço/ Se ponha em seu lugar”.
“Imagine um senhorzinho brigando com a empregada que subiu pelo elevador principal. Veja por essa perspectiva que pode ficar mais interessante”, indica o vocalista.
“Messias”, sobrenome do presidente Jair Bolsonaro, fala de autoritarismo e opressão. Mas Rodrigo, embora diga que o discurso é direto, afirma que o ouvinte deve buscar sua própria interpretação. “Estamos falando daquele programa do SBT, o Bozo”, ironiza o músico.
“Ponto Cego” é rápido, certeiro, barulhento e politizado. Emblemático, coloca o Dead Fish na trincheira da resistência aos fatos e nomes que o trio considera responsáveis pelo retrocesso e pela crise do país. O peixe está mais vivo – e contestador – do que nunca.
Lançamento. “Ponto Cego” ganhou edições em fita cassete, vinil e CD, além de plataformas digitais. No CD, o disco tem 15 faixas – a bônus track ‘O Outro do Outro’ começa 30s depois do “fim” do álbum.
Ouça o novo álbum do Dead Fish: