Música

Elza Soares deixa testemunho social, político e atemporal em disco póstumo

Com críticas à era Bolsonaro e letras de Rita Lee e Pitty, 'No Tempo da Intolerância' é o canto derradeiro de uma artista que é o Brasil na força de sua rouca voz

Por Bruno Mateus | @eubrunomateus
Publicado em 23 de junho de 2023 | 16:01
 
 
 
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Na introdução de “No Tempo da Intolerância” (Deck), disco póstumo de Elza Soares que chegou nesta sexta-feira (23) às plataformas digitais, a cantora recorda a perseguição sofrida nos tempos da ditadura militar (1964-1985) em um depoimento batizado “Justiça”, gravado em 2018. Em meio aos solos chorosos de Paulinho Guitarra, Elza pede justiça para a negritude, para as mulheres, admite as incertezas quanto ao futuro e, entre lamentos e clamores, declara que a luta não terminou. “Um dia eu sonhei que teria um país melhor, que teria um momento menos cruel do que aquele de 1970, que eu conheci muito bem e foi muito amargo”, diz Elsa nos primeiros segundos de “Justiça”.

Logo em seguida, e não por acaso, a faixa-título retrata o Brasil dos anos Bolsonaro, quando saudosistas daquela ditadura que metralhou a casa de Elza e Garrincha e os obrigou a se exilaram na Itália, saíram das entranhas de um podre e desumano tecido social para pedir intervenção militar em plena luz do dia nas praças do país. Citando Martin Luther King, “No Tempo da Intolerância” dá sequência ao manifesto político-musical, que dá o tom das 10 faixas. “No tempo da intolerância/ Acordou com o pé esquerdo tem que ir pra Cuba/ A camisa do Brasil é coisa de fascista”, canta Elza num misto de denúncia e estranhamento.

Elza, morta em janeiro de 2022, entrou no Estúdio Tambor, no Rio de Janeiro, em setembro do ano anterior com a ideia de gravar um disco que encontrasse o samba, mas fosse além. Por isso, “No Tempo da Intolerância” é coerente com a carreira de uma artista múltipla e acerta ao passar a limpo as diversas influências pelas quais ela transitou, especialmente a black music e o afrobeat particular de Elza, que incorpora elementos do jazz, do funk, do r&b e do soul sem deixar de visitar o jovem som latino-americano que também apareceu nos últimos discos da artista.

O bolero não foi esquecido e chega como num salão pouco iluminado, dois pra lá, dois pra cá, embalando “Te Quiero” e decididos versos “Não quero seu telefone/ Apaguei o seu nome/ E não te procuro”. Do caderno de memórias de Elza Soares saiu a maioria das letras, musicadas por Umberto Tavares e Jefferson Júnior.

A missão de organizar os escritos coube ao empresário e diretor artístico do álbum, Pedro Loureiro, amigo e parceiro de todas as horas nos últimos anos em que Elza desfilou por aí. A produção é assinada por Rafael Ramos, da Deck, que recrutou músicos e arranjadores.

Em “Coragem” (Se você é preto/ Não se iluda, meu bem/ Entre eles e nós/ A lei protege quem?), Elza, que desconcertou Ary Barroso e sua audiência ao dizer, do alto de seus 13 anos, que vinha do Planeta Fome, lembra que nasceu “pobre, preta, da cor da noite”, mas também não dá sossego aos que abusam do poder: “A minha boca vai continuar sendo uma arma letal”.

O arranjo de cordas dá tons orquestrais à comovente “Rainha Africana”, letra de Rita Lee e música de Roberto de Carvalho, tabelinha perfeita como perfeito também é o presente que entregaram à Elza, evocando a trajetória de luta e resistência da artista rebelde cuja voz sempre se colocou ao lado das mulheres, dos negros, dos humilhados, dos miseráveis e dos oprimidos – ao cantar sobre eles e elas, entoa também sobre si mesma.

“Pra Ver Se Melhora” grita contra a fome e “Mulher Pra Mulher (A Voz Triunfal)”, traz a escrita, a guitarra, os arranjos de metais e a coprodução da baiana Josyara em faixa sobre o feminismo negro. Música inédita de Pitty, a questionadora “Feminelza” é preenchida com violino, guitarra distorcida, cello, percussão e órgão Hammond no melhor estilo Billy Preston.

De Isabela Moraes, Elza regravou “Quem Disse?”. Antes que ela comece a cantar o samba, WJ coloca voz em um texto extraído do filme “Poesia Marginal”: “Por que o rico é portador de arma e o pobre é marginal com revólver? Por que o rico recebe carinho e o pobre recebe sacode?”. Pedro Loureiro e Elza Soares colocaram letra na melodia inédita de Dona Ivone Lara. O resultado é a suingada “No Compasso da Vida”, que encerra o álbum.

“No Tempo da Intolerância”, esse brado meio blues, meio rap de Elza Soares contra as injustiças sociais de um país tão dessemelhante e uma convocação à luta e à resistência em tempos bicudos, soa como o canto fundamental, derradeiro e atemporal de uma artista que é o Brasil na força de sua rouca voz.

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