Na cidade que se orgulha de ser a capital nacional dos bares, há farta oferta de possibilidades de entretenimento que harmonizam bem com petiscos e uma cervejinha gelada. Para ficar em alguns clássicos, é fácil encontrar em Belo Horizonte estabelecimentos que são palco de apresentações de música ao vivo e de karaokês. Outros tantos apostam em outras atividades recreativas, como opções de jogos e a exibição de partidas de futebol. É nesse cenário que o Old Bar, que funciona há 15 anos no bairro Santa Tereza, tradicional reduto boêmio de BH, decidiu ampliar a cartela de possibilidades de divertimento e passou a receber, em um modesto espaço, glamourosos shows de drag queens.

A novidade surgiu despretensiosamente e já caiu no gosto da freguesia. “A gente estava pensando em alguma atração nova para o bar, então sugeri trazer essa proposta para cá”, explica Alexandre Rodrigues Vieira, 28, ele próprio inserido na cena drag, em que se apresenta como Layla Miller. “No início, fazíamos as apresentações nas quartas-feiras e pensávamos que, com essa ação, iríamos atrair principalmente o público LGBTQIA+. Mas, para nossa surpresa, os antigos frequentadores, mais conservadores, também gostaram”, lembra, usando a primeira pessoa do plural por falar também em nome do dono do estabelecimento, Giovanni Gallo, 48, com quem Vieira é casado.

“Confesso que, de princípio, eu só topei arriscar porque era um desejo do Alexandre, mas fiquei com o pé atrás, meio desconfiado, tremendo que a gente fosse perder nossa clientela mais tradicional”, reconhece o empresário, se dizendo surpreso com o resultado da iniciativa. “As pessoas gostaram tanto que elas próprias pediram para, em vez de quarta, fazer os shows no fim de semana”, conta, orgulhoso. “Agora, fazemos duas vezes por semana. Uma apresentação na sexta e outra no sábado”, explica, detalhando que o bar oferece, nos mesmos dias, música ao vivo e bingo recreativo (joga-se gratuitamente).

O Old Bar comporta um público de até 40 pessoas, possuindo 20 lugares do lado de dentro e mais 20 em mesas postas na calçada. “Desde que começamos, notamos uma grande diversidade de pessoas. “Vem pessoas LGBTQIA+ e também heterossexuais. Famílias com crianças e também idosos. Então, querendo ou não, acho que estamos quebrando alguma coisa, que estamos provocando alguma mudança, porque, apesar de boêmio, o Santa Tereza ainda é um bairro com diversidade tímida”, entusiasma-se Vieira, dizendo que, apesar do número limitado de pessoas, considera que o espaço já se tornou importante para a cena drag de BH.

“Hoje, existem muitas drag queens buscando um palco, mas não há muitos lugares para se apresentarem, principalmente as que estão começando agora”, observa, reconhecendo que o valor arrecadado por meio de couvert (R$ 5 por pessoa) fica aquém do que ele gostaria de oferecer. Mas, pela mesma lógica dos músicos que começam a se apresentar em bares até conseguir arrebanhar plateias mais amplas, Vieira acredita que o Old Bar pode significar um primeiro passo para muitas dessas artistas. “É a chance de fazer um show para um público diverso, testar performances e sentir a presença das pessoas”, defende.

“O mais importante nesse trabalho que fazemos é abrir espaço para novas drag queens e também para aquelas que já fizeram sucesso, mas hoje se veem fora do mercado. Além disso, conseguimos trazer essa arte para quem não a conhecia, para quem só viu na TV. É assim que temos visto preconceitos sendo desmontados”, salienta Vieira, relatando que, após um show, recebeu um cliente que disse ter se surpreendido. “Ele veio até mim se desculpar. Disse imaginar que a apresentação nada foi nada daquilo que ele havia imaginado e que ele tinha feito um julgamento muito equivocado do que era um show de uma drag”, comenta.

SERVIÇO:
O que.
Show de drag queens
Onde. Old Bar (rua Alvinópolis, 122, Santa Tereza, BH)
Quando. Apresentações toda sexta e sábado, às 20h30
Quanto. Entrada gratuita; é cobrado couvert artístico de R$ 5

Uma cena ainda incipiente

Hoje, em todo o mundo, drag queens têm rompido barreiras e conquistado cada vez mais espaço, gozando de prestígio e reconhecimento que, anos atrás, pareceriam impossíveis a artistas que eram vistas como “de segunda categoria”. As cantoras Pabllo Vittar e Gloria Groove, por exemplo, arrastam multidões. Outro sinal dessa mudança se percebe nas palavras do presidente argentino Alberto Fernandez, que já falou sobre o fato de seu filho, Estanislao, de 27 anos, se apresentar como drag. “Nesse segmento cultural, que não conheço muito, ele é muito respeitado e reconhecido. Tenho orgulho do meu filho. Como não vou ter? Ele é militante dos direitos humanos e dos direitos dessa comunidade. Ficaria preocupado se ele fosse um delinquente”, declarou. 

Mas, apesar de a frequência da presença de drags em eventos, programas de TV e peças teatrais, há ainda um longo caminho a ser trilhado na busca por legitimidade e valorização. “No Brasil, e em BH também, essa cena data o início dos anos 90. Antes disso, tínhamos os transformistas, que eram artistas que se fantasiavam de mulheres em shows de calouros e em programas de auditório na televisão. Mas essa era uma perfomance diferente daquela que é proposta pelas drag queens”, situa o pesquisador Luiz Morando, autor do livro “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”.

O estudioso da constituição da identidade LGBTQIA+ na capital mineira cita que, desde os anos 60, há registros da presença de homens “montados”, isto é, caracterizados com elementos atribuídos ao universo feminino. “Na época, era uma prática meio que proibida, até censurada pela polícia, em que homens que tinham identidade masculina durante o dia se transformavam nessas noites, de forma artística, fosse em estilo mais caricatural ou glamouroso”, explicou ele em uma entrevista a O TEMPO, na qual também citou como o clube Montanhês Dancing, na rua Guaicurus, como um dos espaços pioneiros para a arte da “montação”. Em seus tempos áureos, o lugar chegou a receber o cineasta inglês Orson Welles entre seus ilustres visitantes.

Na esteira desse processo, surge o conceito de drag queen, mais requintado que o do transformista. “A popularização do termo na década de 1990 se dá por conta de RuPaul (primeira drag mundialmente famosa, que estampou capas de revistas de renome, lançou o disco ‘Supermodel of the World’, de 1993, e se tornou a primeira modelo drag de uma importante grife de cosméticos) e, principalmente, por ‘Priscilla, a Rainha do Deserto’ (1994), um filme marcante da época, que fez com que esses artistas adquirissem maior status de ‘entertainers’ e vivessem um processo de reconhecimento artístico”, explicou, na mesma reportagem, o professor do departamento de comunicação social da UFMG Bruno Souza Leal.

Um mercado difícil

Diga-se, as duas referências citadas por Leal foram essenciais para que Dolly Piercing, 45, se reconhecesse na arte drag. “Desde criança, eu gostava de me interessava por elementos do universo feminino, das roupas da minha irmã, de maquiagem. Eu também já me inspirava em heroínas, em seriados em que a mulher fica em evidência. Mas a Dolly só vai surgir mesmo em 95, depois que tive contato com a RuPaul, por meio de um programa na MTV, e com o filme ‘Priscilla, a Rainha do Deserto’, que era exibido na TV aberta”, admite, garantindo ter sido a primeira artista do segmento a performar cantando. “Nesse meio, a dublagem é muito comum. Eu, que venho do teatro, inovei nesse sentido”, recorda.

Desde 1995 nos palcos, Dolly Piercing é uma das pioneiras na arte drag queen em Belo Horizonte

Sobre a cena em BH, ela diz ser bastante competitiva. “Lida-se com egos e vaidades e não há muita união, diferentemente de outras categorias, em que as pessoas lutam juntas por direitos e reconhecimento”, critica. “Além disso, há um viés meio amador”, acrescenta, dizendo que, como muita gente não depende do trabalho como drag para se sustentar, a prática acaba relegada a condição de um hobby. “Se a pessoa tem outra fonte de renda, ela gasta se montando sem se importar se, no final, o cachê vai ao menos pagar aquelas despesas. Então, muitos lugares ficam nesse lugar confortável de pagar pouco, fazendo que esse seja um negócio desinteressante para quem verdadeiramente vive dessa arte”, pondera. “Outra questão é o etarismo que impera nesse meio, o que leva a uma aposentadoria precoce e forçada de muitas artistas talentosas, que ainda tinham muito a oferecer”, lamenta.

Dolly, que se reconhece como travesti, relata que a arte drag lhe ajudou a se reconhecer no gênero feminino. “Uma coisa comum, que ouvimos de muitas pessoas nesse meio, diz respeito à força que essas personagens nos emprestam. Quando estamos montadas, temos mais prazer e mais segurança em ser quem nós somos, em viver como desejamos”, sublinha. Não à toa, Alexandre Rodrigues Vieira garante ter reconstituído a própria autoestima após viver sob a pele de Layla Miller.

Onde. Atualmente, em Belo Horizonte, além do Old Bar, shows de drags se concentram, tradicionalmente, em boates e saunas. Além disso, há algum tempo, as festas da cena clubber – como a Dengue - Duelo de Vogue, a @bsurda e a Masterplano – se tornaram palco para essas performances. Eventos municipais, como a Virada Cultural e a Campanha de Popularização do Teatro também contemplam a arte drag.

Glossário

Embora muita gente ainda faça confusão, travesti, drag queen e pessoas trans não são a mesma coisa. É o que explica a assistente social Lirous K’yo Fonseca em um artigo publicado no ano passado no site “Catarinas”.

Drag. “Drag Queen é arte, a pessoa pode até respirar Drag Queen o dia todo, mas ela não passa montada 24h por dia, a não ser em trabalhos ou performances”, escreve a autora. “É óbvio que respeitamos a identidade de gênero da personagem e a chamamos pelo feminino”, acrescenta.

Travesti. Já travesti é uma identidade de gênero política e feminina. “Foi construída antes dos anos 80′ e é uma identidade fixa não fluida, ou seja, a pessoa não se desmonta por vontade própria. A pessoa é ou não é travesti”, anota Lirous.

Trans. Por fim, ela indica que “trans” é uma expressão guarda-chuva, que engloba travestis, homens trans, mulheres trans, transexuais e não binários.

Para ver

RuPaul's Drag Race. Reality comandado por RuPaul, a drag queen mais famosa do mundo, apresenta um concurso em que as concorrentes precisam ser divas e esbanjar glamour para ganhar o cobiçado título de Drag Queen Superstar.

Pose. A série, ambientada em 1987, acompanhamos Blanca (MJ Rodriguez), uma participante de bailes LGBTQ que acolhe algumas pessoas marginalizadas pela sociedade. Atualmente, disponível no Star+.