Uma mulher faz almoço em casa quando toca o telefone. Ela atende, deixa as panelas no fogo e sai, e seu corpo é encontrado 36 horas depois, em outra cidade. Esse é o instigante começo do livro "Dos que vão morrer, aos mortos”, romance de estreia do escritor mineiro Rafael Sette Câmara que será lançado oficialmente no próximo sábado, dia 2 de março, no Mercado Novo, em Belo Horizonte.
O livro, publicado pela Editora Urutau, viralizou no X, antigo Twitter, antes mesmo da publicação, atingindo 1.5 milhão de pessoas e levando a obra a um recorde: foi a maior pré-venda da história da editora.
Embora seja uma obra de ficção, Rafael trouxe histórias da sua vida para compor a trama - e a morte da mãe é uma delas. “Alguns fatos ocorreram na vida real, outros são realidade apenas em mim", explica o autor. "Se minha mãe não tivesse partido de forma violenta e incompreensível, nada do que escrevi existiria. Infelizmente, é nesse ponto que ficção e realidade se confundem.”
“Dos que vão morrer, aos mortos” é uma história sobre o luto e passagem do tempo, mas também fala sobre fé, intolerância religiosa e doenças como a depressão. “Tentei transformar minha história mais triste em algo belo, minha dor em literatura. Este romance é uma espécie de exorcismo”, completa.
O livro traz descrições detalhadas de paisagens da capital mineira: Praça Sete, Rua Sapucaí, Edifício Maletta, Tobogã da Contorno, Pampulha, Savassi e o Cemitério do Bonfim são alguns dos endereços que aparecem na história.
“A cidade onde vivemos tanto nos abraça quanto nos engole, e serve de cenário para as melhores e as piores histórias de quem vive ali”, explica Sette Câmara. "BH é mais que uma testemunha da dor e do amadurecimento do narrador, é também personagem da obra", diz o autor.
O lançamento será aberto ao público no dia 2/3, sábado, às 11h, no Museu Imaginário, no terceiro piso do Mercado Novo. Haverá um bate-papo com o autor, mediado por Lúcio Magalhães e Erick Bernard, que comandam o perfil @ruasdebh. O evento contará ainda com sessão de dedicatórias.
"Dos que Vão Morrer, aos Mortos" tem 172 páginas e custa R$ 60. Pode ser adquirido online, no site da editora Urutau, ou diretamente com o autor @rafaelsettecamara, que envia com dedicatória. O livro teve leitura crítica da escritora Laura Cohen Rabelo, atual vencedora do Prêmio da Academia Mineira de Letras. A orelha é assinada pela escritora Marcela Dantés, finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura.
“O luto, essa planta suculenta, uma mãe-de-milhares que se reproduz infinitamente. Espalhada pelo sopro mais leve, capaz de brotar até na falha do rejunte dos azulejos e nutrida por uma gota d’água, logo ela toma conta do jardim. Sufoca todo o resto, e, mesmo quando é arrancado do peito, o luto segue enraizado, pronto para ressurgir e virar solidão”.
Dos que vão morrer aos mortos, página 34
“O sol se punha escarlate. À nossa frente, a Serra do Curral emoldurava os arranha-céus que escalam a montanha. No alto da Avenida Afonso Pena, prédios modernos e espelhados refletiam o fim do dia, que termina na ponta oposta de Belo Horizonte. A avenida desce reta, quatro quilômetros de asfalto que cortam o centro da cidade de norte a sul, artéria lotada de pessoas voltando para suas casas. Observávamos a cidade planejada dos vivos, em frente, com seu ruído constante e cortante, até que o concreto dos prédios é substituído por cruzes, anjos retorcidos e Cristo crucificado no mármore. Não uma, não duas, mas centenas de vezes. Incontáveis Cristos agonizam eternamente em incontáveis túmulos, alguns novos e floridos, indicando mortes recentes e ainda choradas. Outros velhos e abandonados, provas de que até a morte em seu símbolo máximo, a sepultura, envelhece. As silhuetas de milhares de tumbas eram iluminadas pelo fim do dia, mausoléus tão grandes que pareciam casas, a cúpula da capela transformada em catedral. O município planejado dos mortos. Trezentas e cinquenta mil pessoas em sono eterno e divididas em quarteirões idênticos e de ruas largas e arborizadas, a morte reta e simétrica. Das árvores vinha o canto das maritacas que se preparavam para dormir, uma algazarra que se sobrepunha ao barulho distante do trânsito. Foi o pôr do sol mais bonito que já vi”.
Dos que vão morrer, aos mortos, página 20