No Brasil, as mulheres já são maioria entre o público que consome jogos digitais. Segundo a Pesquisa Game Brasil, de 2022, elas representam 51% do total de gamers no país. Mundialmente, o cenário não é tão diferente. Embora as mulheres ainda não sejam maioria em outros grandes mercados como o asiático e o estado-unidense, elas já se aproximam da paridade representando entre 40 e 50% na Ásia, e 41% nos Estados Unidos.
Mas, mesmo que as estatísticas demonstrem a forte presença das mulheres neste universo, o ambiente dos jogos ainda não é dos mais acolhedores para elas - principalmente no universo online. Casos de assédio sexual, por exemplo, já são registrados até mesmo no Metaverso. Em uma denúncia, do final de novembro de 2021, uma usuária contou ter sido apalpada por um estranho no Horizon Worlds - universo virtual do Meta. O comportamento, inclusive, teria sido encorajado por outros usuários. O caso fez com que a empresa adotasse regras de distanciamento entre os usuários.
A realidade não é diferente nos games digitais. “Já fiz personagem masculino para fugir do assédio”, conta a product designer Amanda Cardoso, de 28 anos. Infelizmente, a prática adotada por Amanda é comum entre as mulheres. De acordo com uma pesquisa divulgada pela plataforma Fandom Spot em maio de 2020, 76% das gamers já disfarçaram o gênero enquanto jogavam, sendo que 93% delas faziam isso por terem sido vítimas de assédio sexual online.
A pesquisa aponta ainda que apenas uma em cada cinco mulheres (22%) se sentia completamente confortável para conversar através do microfone com outros jogadores, e um quarto delas (25%) já havia desistido de jogar determinados games por causa do assédio sofrido.
Espaço seguro
Diante deste cenário, algumas mulheres se reúnem para jogar, conversar e discutir sobre games. Esse é o caso do RPGirls, iniciativa criada em Belo Horizonte que atua de forma presencial e online. “Somos um grupo de mulheres que trabalha para fomentar espaços seguros para outras mulheres no universo dos jogos”, pontua Janine Brioude (JayNerd). Editora de vídeo e youtuber, ela é uma da a iniciativa, ao lado de Amanda Cardoso, da designer de narrativa, roteirista de jogos e professora Amana Zanella e da também professora Barbara Deister.
Janine explica que, embora o projeto tenha começado com foco nos jogos analógicos, principalmente o RPG, o grupo expandiu a atuação durante a pandemia. “Foi quando a gente cresceu mais digitalmente e passamos, também, a falar de outras coisas”, conta.
Dentre as atividades organizadas pelo grupo estão palestras, encontros, lives e podcasts que discutem temas pertinentes às mulheres no universo dos jogos. Nas redes sociais, o grupo também mantém uma atuação forte, com presença no YouTube, Instagram, Twitter e na Twitch. Em todos esses canais, o RPGirls mantém a produção de conteúdos relacionados aos jogos. “A gente sempre conversa, quando vê que tem algo novo que saiu, a gente se avisa e eu produzo o texto, postamos no Instagram”, diz Amana.
Encontros
A iniciativa ainda promove encontros dedicados aos games, tanto presenciais quanto através da internet em diferentes plataformas disponíveis. “Notamos que as mulheres queriam um lugar seguro para jogar, porque por mais que as coisas estejam caminhando, o universo dos jogos é ainda muito masculino e às vezes as jogadoras não se sentem muito confortáveis nesses lugares”, explica Janine.
Amanda reforça o coro e pontua que o projeto não tem como objetivo separar completamente mulheres de homens, mas sim proporcionar um espaço mais acolhedor para as jogadoras. “A gente propõe um ambiente em que você possa se expressar sem ter medo”, destaca.
Desigualdade e preconceito no mercado dos games
Embora as mulheres sigam atuando e reforçando a presença delas nos games, muitos avanços ainda são necessários. Na indústria de jogos, por exemplo, a maioria dos desenvolvedores ainda é homem. Dados da International Game Developers Association (IGDA), divulgados em 2021, apontam que as mulheres ocupavam apenas 30% desses cargos, enquanto os homens representavam 60% do total de desenvolvedores.
Nos cargos de chefia, a presença de mulheres é ainda menor. Segundo o levantamento Global Gaming Gender Balance Scorecard”, desenvolvido e divulgado pela Forbes em 2020, dos 144 executivos das 14 maiores empresas de games, somente 23 são mulheres. Dentro dessas companhias, cinco não possuem mulheres em cargos executivos.
Essa disparidade reflete, inclusive, na forma como as mulheres se veem no mercado. Sócia da G4B, startup que atua nos segmentos de games, e-sports e entretenimento, Cynthya Rodrigues confessa que ainda precisa lidar com a “síndrome de impostora” quando precisa dar alguma palestra, aula ou participar de algum evento relacionado aos games.
“Ainda tem muito machismo no ambiente gamer. Por mais que eu já tenha dado várias entrevistas na minha carreira, sempre me pergunto se tenho conhecimento suficiente para dividir com as pessoas, se sou competente o suficiente para dar uma palestra, uma aula, moderar um painel para milhares de pessoas. Sofro, choro, fico sem dormir às vezes por conta da síndrome da impostora. O trauma de ser mulher é gigante”, diz.
Apontada como uma das 10 gamers empreendedoras do país pela Forbes, Cynthya conta que sempre se lembra de algo dito por uma amiga para manter-se firme. “Uma vez ela me disse algo que me ajuda muito nesses momentos que ‘se você não for, algum homem com conhecimento inferior ao seu vai’ e a minha audiência não merece um conhecimento inferior, elas merecem o melhor e eu sei que estudei demais e me capacitei muito pra isso, então a gente tem que meter a cara, ainda que não se ache pronta o bastante. Se a oportunidade veio até nós já é um excelente indício e mostra que estamos preparadas, sim”, afirma.
Diante deste cenário, a empreendedora, que também faz parte do time de creators do LinkedIn, deixa algumas dicas importantes: a primeira delas é conversar com mulheres que já estão nos locais em que você quer chegar. “Com certeza elas já passaram por situações parecidas, as mesmas dores e desafios. Elas vão te ajudar a direcionar a rota da melhor forma possível”, explica.
A segunda dica é estudar. Muito. “A internet está repleta de informação gratuita sobre a indústria dos games, sobre como funcionam as organizações, publishers, pesquisas com versões gratuitas como a PGB que já ajudam a ter um ótimo panorama de dados e alguns cursos pagos com profissionais atuantes no mercado que valem muito a pena, principalmente para networking”.
Ela ainda orienta às mulheres a focarem no que elas se veem fazendo, e não se limitarem aquilo que fazem no momento. “Um conselho que sempre dou a quem quer migrar para o universo gamer é colocar algo relacionado no seu título do Linkedin e dizer para o mundo que você é um "Gaming Enthusiast" logo após o seu cargo, por exemplo. Independente da área que você está hoje ou da sua posição, as pessoas já vão entender que você é alguém que estuda sobre o assunto”, aconselha.
E por fim, ela destaca a importância de que as pessoas compartilhem aquilo que estão aprendendo. “Aproveite que você está estudando sobre o assunto e compartilhe isso com a sua rede de contatos. Você não precisa esperar ser a maior expert no assunto para poder compartilhar algo interessante que você aprendeu”, reitera. “A oportunidade de trabalho no mundo dos games que você tanto quer pode vir de um post seu”.
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