Música

Jards Macalé lança álbum em homenagem a Zé Kéti com o Sergio Krakowski Trio

Trabalho usa abordagem contemporânea para atingir uma estranha beleza em faixas como 'Acender as Velas' e 'Opinião'

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 17 de janeiro de 2024 | 06:30
 
 
 
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Jards Macalé ri: “O tempo não existe, essa que é a graça”. Ele, que raramente escreve letras de música, se arriscou pela última vez com estes versos, presentes em “Tempo e Contratempo”. Aos 80 anos, o músico não dá trela para calendário. “Não conto o tempo, vou fazendo e vamos nessa. Let’s play that!”, proclama, citando o título em inglês da histórica parceria com o poeta Torquato Neto (1944-1972). 

Antes de cair na estrada em março, com a turnê europeia que revisita o primeiro LP de sua carreira, lançado em 1972, Macalé coloca na praça, nesta quarta (17), o álbum “Mascarada”, em que, ao lado dos talentosos garotos do Sergio Krakowski Trio, formado pelo percussionista que o batiza com Vitor Gonçalves (piano) e Todd Neufeld (guitarra), presta tributo a Zé Kéti (1921-1999).

E sua relação peculiar com o tempo fica ainda mais evidente. Em “O Meu Pecado”, do homenageado com Nelson Cavaquinho, Macalé começa a cantar a música pelo meio para depois chegar ao início, até deixá-la vibrando indefinidamente. 

Livre

“Música, arte, tudo isso é liberdade, é você inventar o diabo em cima do que foi feito, e pode não inventar também”, relativiza o cantor. Ao abordar parte do repertório monumental de Zé Kéti, que compreende quase 200 músicas, em apenas sete faixas, e que, segundo Macalé, “traz uma identidade cultural profundamente brasileira”, a escolha foi pelo caminho da contemporaneidade, com arranjos que congregam jazz e experimentações de linguagem, numa clave que causa um estranhamento proposital. 

“Tem uma beleza estranha que ficou descolada de qualquer formalidade, ficaram sambas de invenção”, conceitua Macalé. Essa estranheza começa pela capa, que reproduz uma pintura de Iberê Camargo. Responsável por abrir os trabalhos, “Acender as Velas”, gravada de Nara Leão a Elis Regina, é definida como “um dos sambas mais lindos de Zé Kéti”, enquanto “Mascarada”, feita com Elton Medeiros, possui “aquela melodia de uma pureza maravilhosa”.

Já “Prece de Esperança” recebe o substantivo “mistério”. A canção teve sua letra original substituída por citações do compositor Walter Franco (1945-2019), de quem Macalé gravou “Cachorro Babucho”, em 1977. “O Walter me influenciou muito na inventividade, ele era muito conciso”, diz.

Estilo

Com formação erudita e um espírito inquieto que ajudou a fundamentar sua personalidade única na música brasileira, Macalé garante que tem o “ouvido aberto”. “Posso ouvir Stockhausen, Zé Kéti, Paulinho da Viola, Tom Jobim, João Gilberto, que, na hora que vou reproduzir, surge a minha versão intransferível e pessoal”, observa.

Esse estilo de Macalé foi definido pelo músico Rogério Skylab de “exacerbação dos sentidos, levando ao limite” cânones como o samba tradicional e a bossa nova, no que o entrevistado assente com a cabeça cheia de ideias, aberta para o imprevisível. 

Um exemplo é “Improvisação”, surpresa autoral do lançamento, cujo título autoexplicativo se conecta ao “conceito de invenção” do trabalho, algo que Macalé havia experimentado, de outro modo, quando gravou um disco com o percussionista Naná Vasconcelos, em 1984. Mas, agora, a história é outra. Ao ser convidado pelos instrumentistas do Sergio Krakowski Trio para homenagear Zé Kéti, Macalé decidiu aproveitar as coincidências. 

Tempo

“Me pareceu uma proposta engraçada porque não se falava mais em Zé Kéti no Brasil e iam gravar um disco sobre ele em Nova York, para onde eu estava indo participar do Grammy”, relembra, em referência à indicação de “Besta Fera” na categoria melhor álbum de MPB.

Em dezembro de 2019, a trupe registrou o rebento musical nesse embalo, reforçando uma relação de admiração que já existia por parte do trio ianque-carioca. “Estou em fase de aprendizado eterno, se eles me reverenciam, eu os reverencio também, procuro esses encontros para entendê-los, compreendê-los e vivê-los, é uma via de mão-dupla”, sustenta Macalé. 

Na década de 1960, quando trabalhava como violonista no Teatro Opinião, ele passou a conviver com Zé Kéti, que conhecia de vista pelas idas ao Zicartola, bar musical de Cartola e Dona Zica. Antes, em 1955, tomou contato pela primeira vez com a obra do sambista, ao ouvir “A Voz do Morro” na trilha do filme “Rio 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos.

Macalé canta como se fosse hoje, “a melodia de um Brasil feliz”. “Imagina dizer isso? É um hino, a carteira de identidade do povo brasileiro”. O tempo não existe, essa que é a graça. 

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