Em um depoimento em 28 de junho de 1964, em uma de suas inúmeras detenções pela polícia de Belo Horizonte, a travesti Cintura Fina afirmou: “Eu sou mulher e nasci mesmo foi para os homens”. A afirmação da figura lendária da boemia da capital mineira, sobretudo nos anos 50 e 60, revela que, mesmo antes de a ideologia de gênero ganhar força, ela mostrou que o entendimento que tinha sobre sua identidade sexual estava bem à frente de sua época.
“E essa data do depoimento é muito simbólica não só por ser o ano em que se iniciou a ditadura militar, mas porque 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBT, mas que só seria oficializado cinco anos depois, em 1969”, ressalta o pesquisador e doutor em literatura comparada pela UFMG Luiz Morando, que é especialista em memória LGBTQIA+ e acaba de lançar o livro “Enverga, Mas Não Quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte” (Editora O Sexo da Palavra).
De cara, um dos aspectos que sobressaem na publicação é a maneira como o autor trata Cintura, no feminino. “Eu acho que é a forma como ela gostaria de ser reconhecida e respeitada. Cintura Fina sempre performou uma feminilidade desde a adolescência, passando pela idade adulta. Ela se vestia como uma mulher, se maquiava, pinçava a sobrancelha. Tratá-la no feminino é uma homenagem”, frisa.
Nascida José Arimateia Carvalho da Silva, em maio de 1933, provavelmente em Fortaleza (CE), num parto em que a mãe acabou morrendo, Cintura Fina foi entregue pelo pai ainda bebê para ser criada por três tias. Aos 14 anos, foi estudar no seminário, onde descobriu sua sexualidade após se envolver com dois primos. “Entrei pro seminário pra ser padre e saí freira”, declarou em uma entrevista ao jornal alternativo mineiro “Oi Bicho”, em 1972. Foi esse episódio que levou ao rompimento familiar, e ela acabou indo parar na zona do meretrício da capital cearense, o Curral das Éguas. O caminho da prostituição se colocou, e ela rodou várias cidades do Nordeste, até que veio parar em BH, em 1953. Sobre o apelido Cintura Fina, a travesti costumava dizer que o famoso baião de Luiz Gonzaga e Zé Dantas (“Vem cá, cintura fina, cintura de pilão/ Cintura de menina, vem cá meu coração”) era inspirado nela – o que nunca foi comprovado. Mas bastava conferir as características físicas da cearense (negra, magra e de corpo acinturado) para fazer a associação. “Sempre fui muito bonito e cuidava do meu corpo”, respondeu certa vez a um repórter quando questionada sobre o motivo da alcunha.

Trabalho detalhado
Para escrever as 340 páginas desse minucioso projeto, Morando se debruçou sobre um vasto material, como arquivos da imprensa, autos processuais, inquéritos policiais, e ainda entrevistou pessoas na faixa de 60, 70 anos. O autor diz que o livro não é uma biografia convencional, mas sim uma “tentativa de dar um pouco mais de precisão, de resolução à imagem de uma personagem embaçada pelo tempo, pela memória e pelo desencontro de informações”. “Ela faz parte de um projeto amplo de resgate de uma memória e das formas de sociabilidade no segmento LGBTQIA+ na capital mineira que eu desenvolvo há algum tempo. Minha ideia com esse trabalho é não só resgatar, mas humanizar a figura de Cintura Fina”, frisa o pesquisador, que lembra como ela acabou se tornando uma personagem mítica na história belo-horizontina. “Os mitos acabam cristalizando uma imagem que nem sempre corresponde à pessoa como ela foi, às ações e atitudes que cometeu. Eu quis retratar a trajetória de Cintura Fina justamente para mostrar que foi uma figura de carne e osso, com todas as falhas e qualidades, como qualquer um de nós. Tenho muito orgulho de ter dado essa contribuição nessa revisão da imagem e da vida dela”, reflete.
Os amores, as brigas, as prisões, a sua relação com a navalha, que a fez ser chamada também de “O Rei da Navalha”, as passagens pelo Rio de Janeiro, onde, inclusive, chegou a conhecer a lendária Madame Satã (transformista e umas das figuras mais emblemáticas da vida noturna e marginal da Lapa carioca), a aproximação com a espiritualidade, sobretudo após conhecer e adotar como mãe Maria da Conceição, a dona Naná, que praticava uma forma sincrética de espiritismo e umbanda no Centro Espírita Santa Bárbara Virgem, na capital mineira, e seus últimos 15 anos de vida em Uberaba, onde morreu em fevereiro de 1995, também estão retratados na obra.
Aliás, um dos pontos que chamam a atenção de Luiz Morando é justamente por que Cintura foi viver na cidade do Triângulo Mineiro (ainda um mistério) e o estado de saúde dela quando faleceu, aos 62 anos. A certidão de óbito apresentava quatro causas: broncopneumonia hemorrágica, gastroenterocolite ulcerativa, fibrose hepática alcoólica e síndrome de imunodeficiência adquirida (Aids). “Apesar de sabermos que Cintura levou uma vida desregrada, se alimentando mal, consumindo muita bebida alcóolica, o que mais me impressionou nem foi a questão do HIV, mas como ela estava bastante debilitada no fim”, observa.
O título do livro, “Enverga, Mas Não Quebra”, não foi escolhido à toa. E, segundo Luiz Morando, reflete precisamente um elemento do caráter de Cintura Fina. “Eu acho que o que mais me chama a atenção em toda a sua trajetória é sua resistência. Ela tinha muito orgulho de ser como é, de saber resistir e nunca se dobrar por qualquer coisa ou pessoa”, resume.
“Guardo Cintura Fina no meu coração”
Em 1998, Cintura Fina foi parar no horário nobre da Globo. Personagem da minissérie “Hilda Furacão”, de Glória Perez, baseada no livro homônimo de Roberto Drummond, na telinha ela foi interpretada por Matheus Nachtergaele. O papel, aliás, foi um marco na carreira do ator. “Cintura Fina acabou sendo um personagem importantíssimo na minha vida. Foi o primeiro trabalho longo que eu fiz na televisão e minha estreia, de certa maneira, na teledramaturgia. Foi uma honra fazer o Cintura Fina”, ressaltou o ator em entrevista ao Magazine.

Nachtergaele diz que, naquela época, pessoas próximas tiveram receio de que o artista ficasse estereotipado e de que os espectadores confundissem ator e personagem. “Eu já fazia cinema e, principalmente, teatro, mas TV ainda não tinha feito de verdade. Então as pessoas achavam que iam me confundir, que a minha sexualidade seria questionada para sempre e eu iria ficar marcado pelo tipo. Mas eu tive certeza de que não. Eu sabia que seria uma aventura maravilhosa”, recorda Matheus Nachtergaele, que fez várias pesquisas sobre Cintura. No entanto, prevaleceu a sua intuição e o seu olhar sobre a travesti. “Compus um personagem obviamente diferente do Cintura original, mas o homenageando. Enfim, procurei fazer um personagem que representasse esse tipo de homossexual prostituído daquela época, os anos 50”, pontua.
O ator conta que teve um retorno bastante efusivo do público e da crítica e se surpreendeu, inclusive, com o sucesso de Cintura com as crianças e adolescentes. “Foi um trabalho importante pra mim, mas muito importante também dentro da TV, me parece ter sido uma das primeiras vezes em que um personagem com esse tipo de situação social e sexual foi retratado de maneira muito intensa, digna, muito saborosa e corajosa. Só trago lembranças incríveis. Guardo Cintura Fina no meu coração como um amuleto e estou muito feliz em saber que vou poder ler um trabalho mais profundo a respeito desse senhor ou senhora que eu homenageei com tanto amor”, celebra. (ACB)
“Enverga, Mas Não Quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”
Autor: Luiz Morando
Editora: O Sexo da Palavra
340 páginas; R$ 58