Música e literatura

Livro vai resgatar personagem feminina entre os meninos do Clube da Esquina

Duca Leal prepara obra que é, ao mesmo tempo, uma autobiografia e um recorte de 20 anos na história do movimento

Por Bruno Mateus
Publicado em 10 de março de 2021 | 08:26
 
 
 
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Em 1971, Indiazinha vivia a plenitude de seus 16 anos, mas, apesar da pouca idade, já sabia o que queria da vida. Em julho daquele ano, ela se casaria com Márcio Borges, poeta e letrista do movimento que, pouco tempo depois, viria a ser mundialmente conhecido como Clube da Esquina. Indiazinha bateu o pé: queria a cerimônia em casa e ela trajaria bota e roupa de cowboy.

A família não gostou muito da ideia, e a jovem, brava, acabou cedendo, mas manteve uma condição: entrou na Igreja da Pampulha de vestido azul claro, sem véu nem grinalda. Nada de tapete vermelho nem flores, ela exigiu, como hoje lembra: “Também não queria que papai me levasse pelo braço até o Marcinho no altar. Ele não concordou e, como a Igreja da Pampulha é muito pequena, deixei pra lá. A Indiazinha era uma menina totalmente destemida, livre e revolucionária, contra todas as convenções”. 

A frase acima é de Duca Leal, e “Indiazinha” era seu apelido na adolescência. Essa e outras passagens, muitas envolvendo Milton Nascimento, Lô Borges, Toninho Horta, Beto Guedes, Fernando Brant e Ronaldo Bastos, entre outros, estarão nas páginas de “Histórias de Outras Esquinas”, que está em fase de revisão e deve ser lançado em meados deste ano.

Duca, mineira de Resplendor, conheceu “os meninos do Clube da Esquina” aos 15 anos, e é de dar inveja a qualquer apaixonado por música quando diz que saía da escola e ia direto para o estúdio acompanhar as gravações. Já casada com Márcio Borges, ela acompanhava a rotina dos músicos onde quer que eles fossem.

“Às vezes, eu achava muito chato. Eu não bebia, mas ia para o bar com eles, e eles falavam sobre marxismo, contracultura, política, e eu não entendia muito disso. Gostava de ficar perto do Bituca. Ele era mais calado, mas fazia algumas brincadeira. Era engraçado. Depois, fui amadurecendo”, conta.

Duca e Márcio ficaram juntos até 1979, quando ela, mais uma vez pegando seu futuro pela rédea, disse a ele que queria ser solteira. Essa fase durou apenas um ano, e o casamento seguiu mesmo até 1984, com dois filhos na garupa. “Histórias de Outras Esquinas” começou a ser pensado mais seriamente há quatro anos.

O livro percorre as décadas de 70 e 80, e Duca descortina os bastidores, a falta de grana, as alegrias, os porres, os tempos vividos em um casarão da Santa Teresa carioca, os desconfortos e a frustração por ter abandonado a faculdade de psicologia por causa das dificuldades financeiras. Narrada parte em terceira pessoa, quando Duca fala, sem julgamentos, sobre Indiazinha, a obra também dá voz e resgata os escritos e as cartas daquela jovem que adorava falar da vida em seus diários. 

Tudo é contado sem rancor nem nostalgia: é o olhar lançado em retrospectiva para um momento determinante na vida de uma mulher que sempre quis ser muito mais do que a companheira de um poeta ou a amiga de artistas geniais. Por isso, Duca é a protagonista de toda essa aventura e tem o mérito de trazer acontecimentos sobre o Clube da Esquina, formado exclusivamente por homens, sob a perspectiva feminina.

“Histórias de Outras Esquinas” também é a trama de uma jovem que lutou contra a ditadura e pela anistia, que escreveu letras de músicas, produziu discos e espetáculos, morou em uma comunidade alternativa no Rio por quase uma década, casou-se novamente, teve outros dois filhos e é avó de cinco netos. “Foram décadas determinantes na minha trajetória, décadas que me deixaram dois filhos, muitos trabalhos. Décadas que foram a minha base da minha vida, para a minha formação”, ela comenta. 

Personagem que inspirou as canções “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo” e “Vento de Maio”, ambas de Márcio Borges, Duca Leal revela histórias que só poderiam ser contadas por quem convivia intensa e intimamente com o grupo. O livro é repleto de relatos aparentemente triviais, mas que, ao longo dos anos, ganharam importância histórica. Após aquele troca-troca de palavras, conserta daqui e altera de lá, foi Duca quem passou a limpo a letra do clássico absoluto “Para Lennon e McCartney”.

Fotos pouco conhecidas ou inéditas também recheiam as páginas de “Histórias de outras esquinas”, cujo prefácio terá assinatura de Toninho Horta.

Para Duca Leal, que nos últimos 20 anos de dedicou à biblioteconomia e é mestre em terapias corporais como reiki e shiatsu, publicar suas memórias é valorizar sua trajetória como mulher dona de seus desejos e seus destinos e também como testemunha de um dos momentos – e movimentos – mais ricos da cultura brasileira: “Lançar essa autobiografia é uma questão de viver e reviver. Reescrever e escrever sobre isso foi muito forte, mais difícil do que eu pensava, mas também muito rico e prazeroso”.

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