Feminino Negro

A cor da solidão

Atrizes levam suas inquietações e experiências pessoais para o palco e problematizam em cena vivências particulares das mulheres negras

Por Joyce Athiê
Publicado em 19 de novembro de 2016 | 03:00
 
 
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"Na escola, a menina negra não é a que o professor irá chamar de linda, dizer que é capaz. Na adolescência, nas primeiras paqueras, ela também não será a desejada pelos meninos, não será chamada de gata ou de bonita. Na universidade, sua capacidade e seu conhecimento não serão levados em conta”, assim exemplifica Danielle Anatólio o que significa a solidão da mulher negra. 
Atriz de Belo Horizonte, Danielle passou quatro anos em Salvador pesquisando a cultura negra, mais especificamente o teatro negro. Unindo teoria e vivência, ela criou o espetáculo “Lótus” que apresenta amanhã ao público de sua terra natal, exatamente na data em que se marca o Dia da Consciência Negra. O trabalho será apresentado, às 19h, no Espaço Cultural Tambor Mineiro. 
Como bem mostra a fala de Danielle, refletir sobre questões raciais, num país em que o racismo se faz naturalizado e camuflado, é urgente. Mas, para chamar atenção da obviedade daquilo que é apagado, ela e outras atrizes recorrem ao campo da sensibilidade crítica e à retratação do íntimo como forma de expressão e ferramenta política. 
Ao expor e compartilhar a intimidade por meio da arte, a vivência pessoal toca uma fala coletiva e põe em cena um assunto pouco falado em âmbito geral. 
“Eu vim de uma família matriarcal em que mãe, avó e tia são mulheres negras e solteiras. Quando vamos falar de afetividade, é até difícil abordar o assunto com felicidade, porque a mulher negra da minha geração é preterida por outra, e essa outra é uma branca. Ou então, ela está casada e é sozinha dentro da relação”, comenta a atriz. “Um rapaz até se casa com uma moça de pele mais clara, uma morena, mas, infelizmente, não se casa com uma preta. Ainda vivemos em um país em que um branco que se casar com uma negra é visto como aquele que vai sujar a família. Logo pensam em que o neto pode nascer preto”. 
Para além da afetividade e das relações amorosas e sexuais, as trajetórias das mulheres negras são permeadas por um complexo conjunto de estruturas de exclusão intimamente relacionado ao processo de escravidão, que as leva ao sentimento de solitude. “É importante dizer que a solidão da mulher negra tem diversas dimensões. Ela não é só afetiva. A mulher negra é solitária desde criança. O negro não está associado à beleza, ao conhecimento, à inteligência, à capacidade”, enfatiza Danielle.

Assim também reforça a atriz Aysha Nascimento, do Coletivo Negro, de São Paulo. Neste ano, ela estreou o espetáculo “Ida”, em que levou à cena suas inquietações sobre o universo feminino negro, abordando as conquistas e também as perdas. No palco, ela e a bailarina mineira Verônica Santos dão vida a Ida, mulher, jovem, negra e arquiteta que, metaforicamente, ao falar da construção de um projeto arquitetônico, traça pontos e contrapontos de sua própria reconstrução. 

“Eu quis falar da mulher empoderada porque, hoje, há outras camadas de mulheres negras. Comecei a perceber essa nova mulher, que assume sua negritude, que tem orgulho do seu cabelo, que está na universidade e que, ainda assim, é muito invisibilizada”, conta a atriz. 

“Eu não queria retratar, por exemplo, a mulher em relação ao homem, mas ela em relação a ela mesma. Mas eu não podia ignorar essa solidão que não é apenas do parceiro. É a solidão dos pares. Quando essa mulher chega à universidade, ela não tem apreço, não tem com quem compartilhar suas vivências. Num curso de arquitetura, por exemplo, que é uma profissão branca e masculina, são poucos os pares que essa mulher vai encontrar”, afirma. 

Soraya Martins, atriz e pesquisadora de Belo Horizonte, compartilha das mesmas inquietações e se prepara para levar o tema para a cena em um trabalho com previsão de estreia para 2017. Também ela aponta outras dimensões sobre a solidão. “Podemos pensar nessas mulheres que ficam solitárias quando perdem seus filhos por causa do genocídio da população negra. Se pensarmos na questão carcerária, quem são as mães desses presidiários? Tudo isso são heranças que temos que carregar por causa da nossa cor de pele”, comenta.
 

Vivências Particulares

Atrizes refletem sobre construção de uma linguagem cênica para problematizar inquietações pessoais e coletiva

 
Para construir “Lótus”, espetáculo que apresenta amanhã, às 19h, no Espaço Cultural Tambor Mineiro, a atriz Danielle Anatólio fez uso da oralidade e da observação. “Para falar da solidão das mulheres negras, primeiro eu parti da minha família, das vivências das minhas primas, da minha irmã, da minha mãe, da minha avó e das mulheres negras ao meu redor”, afirma. 
Ela contou ainda com o livro “Mulher Negra: Afetividade e Solidão”, da socióloga Ana Cláudia Lemos Pacheco e, para jogar luz ao trabalho de outras artistas negras, Danielle recorreu à poesia negra feminina com trabalhos de escritoras como Lívia Natália, Mel Adún e Cristiane Sobral. “Trago tudo isso para a cena e construo minha própria dramaturgia, dialogando diretamente, como um bate bola”, conta a atriz. 
Embora o trabalho faça uma homenagem às mulheres negras, Danielle deseja que o espetáculo, recém estreado em Salvador, seja visto por um público amplo. “Espero ter na plateia muitas pessoas brancas, sobretudo homens brancos, porque esse é um tema que nós, mulheres negras, já estamos carecas de saber. Essa é uma performance que necessito que homens assistam para perceberem essa forma escrota com que têm agido que nos deixa no lugar de solitude”, comenta Danielle que, até o momento, não contou com a presença expressiva do público masculino.
“Eles não se apetecem pelo tema. É um desafio trazê-los para assistir porque eles estão no lugar de machismo de dizer que isso é ‘mimimi’, vitimismo, quando sabemos que não se trata disso”, completa.
Também as mulheres brancas são muito bem-vindas para a atriz. “Desejo que elas assistam a peça para perceber o tanto que precisamos que elas sejam companheiras e possam compreender de que lugar nós estamos falando porque há diferenças”, pontua.
Quanto à receptividade das mulheres negras, público mais cativo, a identificação gera o sentimento de representatividade e gratidão. “Elas pensam ‘porra, essa é a minha história’. E eu trago para elas o convite para nos libertamos e nos unirmos”, conta. 
Além do sentido político que o tema carrega, a representação de sentimentos de uma esfera íntimo e pessoal traz para o trabalho cênico a dimensão de um ritual que tange em desejos e processos de cura. “‘Lótus’ é um espetáculo que nos ensina a lidar melhor com esse sentimento de solidão. Durante o trabalho, dialogo com o público e abordo, cenicamente, o lugar da superação, o lugar do amor que não foi pensado para nós. Desde a escravidão, o amor próprio nos foi retirado”, comenta. 
 
Diálogos. A atriz e pesquisadora Soraya Martins, que está em processo de criação sobre o mesmo tema, também compreende o teatro como um espaço para lidar questões pessoais que encontram ressonância no âmbito coletivo. 
É uma vontade muito pessoal de querer falar sobre o que as mulheres negras ou sofreram ou sofrem. É uma vontade de colocar a coisa para fora porque sempre vivemos esses vários tipos de exclusão. Antes, eu pensava que era algo que acontecia comigo, mas sabemos que essa questão é um reflexo de uma condição social, de um racismo que nos nega até o afeto. E, nesse sentido, levar essa questão para a cena é também um ritual de cura muito particular, um processo terapêutico, mas preocupado também com uma pesquisa cênica”, afirma.
“O discurso de todas nós é muito parecido. Estamos falando de uma mesma vivência e é por isso que busco uma poética cênica negra, que vai além da linguagem e dos simbolismos que estamos acostumados a ver em cena, tratando o negro como subalterno. O tema me inquieta, mas no teatro tenho uma motivação artística e cênica”, explica a atriz.
 
Agenda
O quê.Espetáculo “Lótus”
Quando. Amanhã, às 19h
Onde. Espaço Cultural Tambor Mineiro (rua Ituiutaba, 339, Prado)
Quanto. R$ 20 (inteira)
Observação. Como uma forma de reforçar a homenagem e promover a inclusão, mulheres negras pagam meia-entrada

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