Perfil

A experiência ética da arte

O ator e intérprete Rodrigo Jerônimo compartilha seu pensamento artístico pautado por um olhar político do mundo

Por Joyce Athiê
Publicado em 25 de junho de 2017 | 03:00
 
 
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“Madame Satã”, que estreou em 2015 com direção dos mineiros Rodrigo Jerônimo e João das Neves, finalizou recentemente sua primeira temporada paulista, com uma substituição no elenco que alterou não apenas a composição da equipe, mas carrega em si uma reflexão e uma prática política, social e, sobretudo, de cidadania.

“Me deparei com um manifesto contra o trans fake que reivindicava a representatividade nas artes, na publicidade etc. Quando estávamos prestes a começar os ensaios para a temporada paulista, retomei o manifesto e comecei a problematizar minha personagem, que era travesti. Depois de muitas conversas, decidimos que o melhor seria chamar uma trans para me substituir”, comenta Jerônimo que, além de dirigir, interpretava Primorosa, uma travesti que foi apaixonada por Madame Satã.

A peça, que parte da biografia daquela que carregou a alcunha de ser a primeira travesti do país, para, então, abordar temáticas caras à atualidade, como a homofobia e o racismo, conta, agora, com a presença de Juhlia Santos em cena.

“Logo no primeiro dia, percebemos o peso que a presença da Juhlia traria para o espetáculo. Ela veio com propostas e uma leitura própria sobre a Primorosa e os diversos contextos em que a personagem aparece em cena”, conta Rodrigo.

Além de ser uma resposta a um movimento ativista, a substituição foi também a materialização de um pensamento que permeia o espetáculo, assim como a poética e a vida de Rodrigo, refletindo sua vivência na criação artística, em sua maioria, pautada por uma postura política diante de temas como a homoafetividade e o negro na sociedade brasileira, entre outras lutas.

“Meu primeiro despertar acerca da minha negritude foi justamente em cena, em ‘Galanga Chico Rei’, dirigido por João das Neves e Titane e escrita por Paulo César Pinheiro, em que tive que entender meu lugar como homem negro no mundo. Não tinha noção do peso que isso representaria na minha vida. Devido a esse despertar, quase que naturalmente, acabou que o teatro se tornou uma zona de convergência entre o que eu achava do mundo e o que eu estava representando”, observa.

Das similaridades entre o que levava para o palco e o que vivia cotidianamente, o trabalho do ator, membro do Grupo dos Dez, ganhou outras chaves para se pensar o teatro que realizava ou almejava realizar. “Percebi que apenas falar de ícones negros em cena não resolvia uma grande questão para nós, artistas pretos: a exclusão dos palcos brasileiros. Percebi que, por mais sucesso que nossas peças faziam por onde passavam, continuávamos a ser maltratados em hoteis e restaurantes que frequentávamos nas viagens. Percebi que o que eu dizia em cena não era diferente do que eu vivia na minha vida. Com o tempo, minha militância artística foi se pareando com a militância política”, conta o ator.

“Com o tempo, fiz do teatro uma grande plataforma para ter a voz que sempre me foi negada em outras instâncias. O teatro me possibilitou ser ouvido como nunca tinha sido. Por fim, percebi que seria impossível subir ao palco e não trazer essas questões”, completa.

Estética. Além dos assuntos discutidos em cena, a tomada de consciência refletiu também nas formas estéticas de criação de Jerônimo. “Procuro, realmente, fazer com que as pessoas tenham uma experiência que ultrapasse o discurso. Tento fazer com que a empatia seja provocada no público para, enfim, tentar modificar algo, nem que seja por uma hora, mas que essa hora seja a semente para modificar corações. Refletir sobre o negro e o LGBT no mundo é refletir sobre mim. No fim das contas, acho que tudo isso tem a ver comigo. São tantas feridas abertas, que o teatro veio com essa função de me curar e, por sorte, o teatro tem o poder de curar dores de outras pessoas que não necessariamente estejam em cena”, afirma.

Consolidação. “Madame Satã” foi um divisor de águas na carreira do ator e do seu grupo. “Quando fomos selecionados pelo Galpão Cine Horto para realizar o 17º Oficinão, não sabíamos em que aquela experiência ia dar. Mas, logo nos primeiros dias de ensaio, percebi que existia algo diferente ali. Mesmo tento trabalhado quase sempre com artistas negros, o Grupo dos Dez nunca foi um grupo de Teatro Negro, mas se tornou em ‘Madame Satã’”, observa.

Antes da estreia, a ideia de fracasso rondava o grupo, afinal, musicais não são exatamente usuais na cena mineira. “Mas, ao longo da temporada, percebi o enegrecimento da plateia do Cine Horto, e foi nesse momento que percebi as ausências também de curadores, artistas e proponentes negros. A comoção causada pelo espetáculo talvez tenha a ver com essa representatividade, afinal, são 14 pessoas em cena e 12 delas são pretas, que tocam, cantam, atuam, dançam. Talvez por conta da época em que estamos, por se tratar de um espetáculo que trata de temas tão onerosos pra todos nós, ‘Madame’ fosse a voz não apenas nossa, mas de tantos outros que iam nos assistir e voltavam várias vezes”.

Música e teatro. Jerônimo viveu sua infância e adolescência em Matozinhos, onde seu pai tocava tuba na banda de música da cidade e o obrigava, bem como aos irmãos, a frequentar aulas de teoria musical que aconteciam aos domingos. “Foi nesse momento que me interessei efetivamente pela música”, conta.

Já em Belo Horizonte, conheceu Titane em espetáculos musicais e, em 2007, participou de uma oficina que a cantora ministrou. Acabou ingressando no elenco de um espetáculo dirigido por ela e seu companheiro, o ator, diretor e dramaturgo João das Neves. Já vivendo do universo artístico da dupla, ele conheceu artistas que o influenciaram, como Sérgio Pererê e Makely Ka.

“Foi através de Titane e João das Neves que entendi que poderia viver de arte. Não existe a possibilidade de falar de mim no teatro sem falar de João das Neves, tampouco de Titane. É João quem me ensina o que é ética, ser coerente, algo caríssimo para todos nós, ele que me mostrou que, por vezes, precisamos abrir mão de certos privilégios para nos aproximarmos desse teatro ético, que ele vem fazendo a tanto tempo. Foi Titane quem me disse pela primeira vez para acreditar na vida, e que seria possível viver de arte”, lembra.

Em 2008, provocado pela cantora, Jerônimo idealizou com sua irmã Bia Nogueira e outros colegas de arte um projeto de pesquisa acerca dos musicais brasileiros. Fundava-se ali o Grupo dos Dez, coletivo teatral em que, de certa forma, ele conseguiu agregar suas linguagens artísticas, a música e o teatro.

“Acabo de lançar meu primeiro disco, ‘Fio Desencapado’, e integro um coletivo de músicos negros, o Imune, que tem a pretensão de ser uma plataforma de fomento da música produzida por pessoas negras. Começo agora a pensar seriamente em desenvolver o cantor na minha vida, uma vez que até então fiquei por conta do ator. Não sou compositor, sou intérprete, e adoro ser intérprete. É mais uma possibilidade do teatro na música”. 

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