Cinema

A falta que elas fazem 

Mulheres ainda são minoria na frente e atrás das câmeras

Por Daniel Oliveira
Publicado em 23 de agosto de 2015 | 03:00
 
 
 
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Filha do diretor Jorge Bodanzky, Laís Bodanzky frequentou sets de cinema e teve contato com os grandes nomes do meio desde muito jovem. Decidir seguir a mesma carreira, portanto, não foi algo muito difícil. Mas quando chegou a hora de dirigir seu primeiro longa, ela se deu conta de algo estranho. “Eu não tinha referência do que era ser uma mulher diretora. Até como se comportar, se vestir, com que tom falar. A gente precisa de referência, e eu nunca tinha visto uma”, confessa.

Não se trata de uma falha na formação de Laís. Muito menos de um problema pontual. No início do mês, um estudo ganhou as manchetes nos EUA ao evidenciar a baixíssima diversidade no cinema hollywoodiano em 2014. Segundo a pesquisa, menos de 2% dos filmes produzidos no país no ano passado foram dirigidos por mulheres, e apenas 30% dos papéis com fala nesses longas eram femininos – entre outros números ainda piores com relação a negros, latinos e LGBTs.

FOTO: Acir Galvão Piragibe/Divulgação
Mulheres no cinema
Num mercado ainda dominado por homens, elas lutam para deixar de ser minoria na frente e atrás das câmeras

O TEMPO fez um levantamento similar com os números do cinema brasileiro, e eles são melhores, mas não muito. Segundo o site da Ancine, dos 114 longas nacionais lançados em 2014, apenas 11 foram dirigidos por mulheres – menos de 10%. Em 2013, de um total de 129, foram 21 (16,2%). O melhor resultado aparece em 2012: de 83 longas, 20 foram comandados por mulheres, ou 24%.

Sim, os números são melhores que nos EUA. Mas quando se considera que, segundo o IBGE, 51% da população brasileira é feminina, que 45% dos advogados credenciados na OAB-MG e 40% dos médicos ativos no CRM-MG (carreiras muito mais tradicionalistas) são mulheres, é difícil entender por que o cinema ainda cheira a meia e cueca como o quarto de um adolescente de 15 anos.

“Eu não acho que seja ruim. O que eu vejo é um salto”, contrapõe o pesquisador Luiz Felipe Miranda. Um dos responsáveis pela “Enciclopédia do Cinema Brasileiro”, ele conta que, até 1990, apenas 30 mulheres haviam dirigido um longa no país. De 1991 a 2013, esse número saltou para 250. “Na década de 70, 14 novas diretoras surgiram, mas nenhuma delas fez carreira. Fizeram um ou dois filmes. Hoje, você tem a Tizuka Yamazaki, que dirigiu mais de dez”, compara.

Mesmo defendendo que o cinema não é uma arte machista, Miranda reconhece um certo desvio. “A Gilda de Abreu, primeira brasileira a dirigir dois longas, contava que, quando vestia calças, a equipe a respeitava mais no set”, ele ri. Quando foi finalizar “Bicho de Sete Cabeças” na Itália, país tão ou mais machista que o Brasil, Laís Bodanzky sentiu isso na pele. “O Luiz (Bolognesi, roteirista do longa e marido da diretora) foi comigo, e eles só se dirigiam a ele como autor do filme”, lembra.

Não há como ignorar, porém, que as coisas mudaram um pouco desde quando Gilda dirigiu “O Ébrio”, em 1946. Bodanzky percebeu isso recentemente, quando dirigiu dois episódios para uma série da HBO. “Uma atriz novata, que estava fazendo figuração, chegou pra mim e disse 'curioso, nesse set quem manda são as mulheres'. E era verdade, não só eu, mas a assistente de direção, a fotógrafa, a diretora de arte, éramos todas mulheres”, recorda.

Outra acostumada a frequentar sets desde pequena, Julia Rezende confirma essa evolução. Filha do diretor Sérgio Rezende e da produtora Mariza Leão, a jovem de 29 anos acabou de dirigir “Meu Passado me Condena 2”, segunda maior bilheteria do cinema nacional em 2015. “Se você entra num set hoje, vê muitas mulheres nas funções técnicas. Minha produtora é minha mãe, a montadora é mulher. Até na equipe de câmera, que sempre foi muito dominada por homens, vejo cada vez mais mulher fotografando. Acho que mudou muito em comparação ao set do meu pai”, avalia.

Futuro. Esse cenário tem uma origem muito clara: a grande presença feminina nos faculdades de cinema. Rafael Ciccarini, coordenador do curso da UNA, na capital, conta que, além do corpo docente ser majoritariamente feminino, dos dez trabalhos de conclusão que está orientando, seis são dirigidos por mulheres.

O que é difícil explicar é por que muitas delas, ao se formarem, acabam derivando para outras áreas, como o roteiro, a produção ou direção de arte. “A figura do diretor é muito masculina, assim como a mentalidade e a história do cinema é muito masculina, heterossexual, escrita por e sobre homens. Quando falamos dos pioneiros, todo mundo cita os Lumière, mas ninguém lembra da Alice Guy, tão pioneira quanto”, opina Ciccarini. Desconstruir essa mentalidade, para ele, é comprar uma briga simbólica a que nem toda mulher está disposta. “A batalha é mais árdua para uma mulher se afirmar como diretora do que para um homem. Mas acho que essa briga simbólica está atrasando o processo, não impedindo, porque é uma questão de tempo”, considera.

Ele ressalta, no entanto, que apesar dessa ideia imortalizada pelos franceses de que apenas o diretor é autor do filme, nem sempre é ele que importa. “Tem muitas roteiristas e produtoras que fazem a diferença”, reflete. Adilson Marcelino, editor e criador do site “Mulheres do Cinema Brasileiro”, concorda. “O cinema nacional, refletindo a sociedade brasileira, sempre foi comandado por homens. Mas as mulheres, como a Vânia Catani e a Sara Silveira estão tomando isso na marra”, argumenta Marcelino.

Exemplos assim são fundamentais. Com 21 anos e prestes a se formar na UNA no fim do ano, Bruna Martins teve receio de entrar na faculdade de cinema exatamente por se tratar de um meio masculino. Ela conta que isso mudou quando, logo no início do curso, teve a chance de trabalhar na Teia, com a diretora Tonia Amaya, e depois na Anavilhana Filmes, das produtoras Luana Melgaço, Clarissa Campolina e Marília Rocha.

“Foi um encorajamento enorme ver essas quatro mulheres tão fortes e ativas fazendo filmes que eu adoro. Apesar dos poucos nomes ouvidos em sala de aula, foi um motivo para continuar firme no curso e lutar junto com elas para ter essa voz feminina no cinema”, explica Bruna, que está dirigindo uma adaptação em stop-motion do conto “O Gato Preto”, de Edgar Allan Poe, para seu projeto de graduação.

Anos depois de não ter encontrado uma referência, Bodanzky reconhece a melhora. “Hoje mesmo respondi a mensagem de uma amiga, uma cineasta mais nova que eu, percebi que ela me tinha como referência e pensei 'que legal' que, de certa forma, também posso estimular novas diretoras que estão querendo chegar”, revela.

 

FOTO: Arquivo pessoal
Bruna Martins e Julia Rezende
Expectativa. Bruna Martins (esq.) ganhou esperança com grandes mulheres do cinema mineiro; Sucesso. Julia Rezende (dir.) dirigiu a segunda maior bilheteria do cinema nacional em 2015

Olhar

Presença em outros elos é importante

O fato de muitas alunas dos cursos de cinema derivarem para outras áreas, que não a direção, não é algo necessariamente ruim. Algumas delas ocupam posições fundamentais, capazes de potencializar a presença feminina na indústria. É o caso de Barbara Sturm que, aos 26 anos, é vice-diretora da distribuidora Pandora, que lança, nesta quinta, “Que Horas Ela Volta?”, filme nacional mais premiado do ano, dirigido por uma mulher, Anna Muylaert, e protagonizado por Regina Casé.
“Não derivei para outra área, fiz uma escolha”, afirma Sturm, que cursou cinema e chegou a dirigir curtas. Para ela, o motivo pelo qual muitas alunas acabam fazendo opções semelhantes é que, no Brasil, dirigir significa escrever, dirigir e produzir. “São três funções muito desgastantes, e a mulher é muito dedicada. Prefere fazer uma coisa só bem feita”, opina.
Curiosamente, o primeiro filme que ela comprou foi “Tomboy”. “Um dos maiores sucessos dirigidos por uma mulher na França”, lembra. Para Sturm, porém, fortalecer a diversidade no cinema é mais do que simplesmente selecionar longas de direção feminina. “Busco encontrar filmes que tenham alguma mensagem, façam você pensar, que mudem seu cotidiano”, explica. 
Ela cita como exemplo o alemão “Barbara”, um longa essencialmente feminino, que foi o maior sucesso da Pandora até hoje no Brasil, e foi dirigido por um homem, Christian Petzold. “E eu acredito que ele foi muito bem porque tinha uma protagonista feminina forte, e existe esse interesse no Brasil”, defende. 
A vice-diretora é uma das que defende que não existe um “olhar feminino” na direção. Mas que a presença da mulher no processo criativo faz diferença. “Nós lançamos dois longas, ‘Tudo Acontece em Nova York’, e ‘A Lição’. Um é francês e outro, búlgaro, mas curiosamente os dois foram dirigidos por um casal. Os dois são completamente diferentes: um é duro, realista, o outro, fofo, pop. Mas ambos têm personagens femininos fortes e mostram uma delicadeza da mulher, que não é necessariamente sutil”, analisa. 
“Um pouquinho da mulher em várias áreas da cadeia resultam num conteúdo mais elaborado do ponto de vista feminino, mesmo que as protagonistas não sejam mulheres”, defende Laís Bodanzky, cujos principais filmes são protagonizados por homens. E Sturm é uma prova de que essa contribuição pode, e deve, vir de todos os elos da cadeia.
“É engraçado que no Brasil, até cinco anos atrás, só tinha homem dono de distribuidoras e programadoras”, conta a vice-diretora. E com a chegada de empresas como a Pandora, Esfera, Vitrine e Tucumán, formou-se um novo cenário, de escolhas mais ousadas e perfil mais artístico. “E é curioso que essa geração mais ‘ácida’ é toda de mulheres”, celebra Sturm. 
Essa tradição do mercado foi o maior desafio encontrado pela jovem. Sturm acredita que, em um momento ou outro, todo mundo sofre preconceito na vida. Ironicamente, o que ela encontrou não foi por ser mulher. “Sofri bem menos preconceito por ser mulher do que por ser jovem, e estar normalmente cercada por um monte de gente que tem idade para ser meu pai”, ri a desbravadora. 
 
FOTO: Divulgação
Meu Passado me Condena 2
Estereótipo. Personagens femininas em comédias românticas como "Meu Passado me Condena 2", filme de Julia Rezende com Fábio Porchat e Miá Mello, são acusadas de simplismo pelos críticos

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Representação ainda é problema

Tão ou mais importante que a presença das mulheres por trás das câmeras é a representação feminina que se faz na frente delas. E para o editor do site “Mulheres do Cinema Brasileiro” Adilson Marcelino, um dos principais problemas da produção nacional é o desserviço que ele tem prestado ao feminismo. 
“Filmes como ‘Loucas pra Casar’ e ‘S.O.S. – Mulheres ao Mar’ trazem representações terrivelmente simplistas das mulheres, que esvaziam anos de conquistas feministas”, ele avalia. E o pior, ele ressalta, é quem está por trás dessas produções. O primeiro é produzido por Mayra Lucas e co-escrito por Júlia Spadaccini. E o segundo é dirigido por Cris D’Amato. 
E como pregam as feministas, existe um lugar especial no inferno para mulheres que diminuem outras mulheres. “O Walter Hugo Khouri e o Carlos Reichenbach fizeram filmes com personagens femininas muito mais ricas e complexas. E as personagens da Helena Ignez e da Maria Gladys na Boca do Lixo eram muito mais libertárias e independentes”, compara. 
Ainda assim, Marcelino ressalta que os últimos 20 anos trouxeram um número inigualável de artistas fazendo obras de extrema relevância para as mulheres. Ele cita as diretoras “Ana Carolina, que realizou uma trilogia sobre a opressão contra o feminino; Tata Amaral, e as belíssimas personagens de seu “Um Céu de Estrelas”, além de Lina Chamie e l.aís Bodanzky”.
Ainda assim, o pesquisador considera haver uma grande defasagem na representação feminina no cinema brasileiro. “Cadê os bons personagens para Rosane Mulholland, Simone Spoladore, Leona Cavalli, Carla Ribas, Hermila Guedes? Cadê Cássia Kiss protagonizando filmes? São grandes atrizes à procura de bons personagens”, elenca. 
Laís Bodanzky, que começa a rodar no fim do ano seu próximo longa, “Como Nossos Pais”, sobre três gerações de vó, mãe e filha, acredita que o cenário está melhorando. “Como foi considerada menos importante pelo inconsciente e pelas próprias mulheres, a história das mulheres ainda não foi contada. E o cinema precisa de histórias novas, e sinto que elas estão sendo descobertas e gerando economia”, ela argumenta. 
Mesmo Julia Rezende, que realiza comédias românticas similares às criticadas por Marcelino, defende essas produções. “Acho que estamos questionando como é, para a mulher, criar afetos com uma vida profissional e todas as responsabilidades que ela vem assumindo”, contrapõe. 
Para o pesquisador, porém, se o cinema é um olhar sobre a realidade, os artistas brasileiros precisam estar mais atentos ao mundo em que vivem. “Precisam estar mais atentos ao seu momento histórico. O mundo mudou, as famílias não são mais o que eram, e as mulheres hoje, elas são outra coisa. O cinema precisa refletir isso”, pleiteia.
 
 

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