Cinema

A vingança das musas

Dez anos após 'Sangue Negro', Paul Thomas Anderson e Daniel Day-Lewis se reúnem no ótimo 'Trama Fantasma', indicado a seis Oscars

Por Daniel Oliveira
Publicado em 20 de fevereiro de 2018 | 03:00
 
 
 
normal

Uma cena fundamental para entender Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), protagonista de “Trama Fantasma”, é quando ele conta que o primeiro vestido que criou foi para sua mãe, aos 16 anos. Desde então, tudo que o estilista (assim como a maioria dos homens) busca em uma mulher é uma substituta para essa figura materna: alguém que lhe sirva de musa inspiradora e, ao mesmo tempo, atenda suas necessidades básicas, sem perturbar sua genialidade mimada e cheia de manias.

Até que ele encontra Alma (a revelação Vicky Krieps). Ela tem tudo para ser a musa da vez: bela, longilínea, aparentemente dócil. Mas a jovem vai se recusar a ser uma mera tendência da estação, esquecida na próxima. No jogo de criador e criatura que Woodcock estabelece com suas mulheres, Alma não aceita ser apenas um manequim. Ela quer criar também. E vai fazer isso usando a narrativa que o estilista estabeleceu para sua vida contra ele.

Nesse tango dançado pelos dois, e no jogo de poder quase sadista travado entre eles, o cineasta Paul Thomas Anderson alicerça o filme que estreia nesta quinta. Trabalho mais clássico do diretor de “Sangue Negro” e “Magnólia”, o longa é uma subversão divertida e instigante de “Um Corpo que Cai” – e da tradição da ficção ocidental sobre um homem moldando uma mulher para que ela se adeque à sua fantasia misógina.

Porque Alma tem uma personalidade, uma voz. O protagonista – e sua irmã Cyril (Lesley Manville, ótima), ao mesmo tempo um paradigma desse ideal materno que ele procura em uma mulher e uma externalização do controle militar que ele busca manter sobre sua vida – tentam adestrar a jovem a se tornar mais um manequim silencioso na “Casa de Woodcock”, onde o estilista cria seus vestidos para a nata e a nobreza da Londres dos anos 50.

Mas Alma é um barulho. Um distúrbio fora da curva no reino sistemático e virginiano da existência do estilista – materializado na fotografia pictórica do próprio Anderson no início do filme, que vai lentamente dando lugar ao caos. Em seu funcionamento e engrenagens quase fordianas, a casa é uma representação da vida de Woodcock, e cada som ou elemento que destoe dessa ordem é destacado pela minúcia do diretor. A forma como ele usa a edição de som para ilustrar a perturbação causada pela presença de Alma ali, transformando a torrada de um café da manhã em um dos elementos dramáticos mais importantes do filme, é simplesmente genial.

Porque comida e roupa são os dois elementos centrais do longa e marcam o encontro dos dois protagonistas. Ela é a garçonete que lhe serve uma refeição. Ele é o estilista que oferece a ela alta costura e glamour. E esses vestidos de Woodcock (desde já um Oscar garantido do filme, para Mark Bridges) são, ao mesmo tempo, um prazer que ele proporciona a suas clientes – a reação da primeira mulher que experimenta um vestido dele é quase orgástica, como se fosse tocada sexualmente pelo protagonista por meio da roupa – e uma prisão onde ele as enclausura em sua ordem de mundo.

Alma se deixa seduzir por esse prazer, tornando-se uma das modelos dos vestidos e das narrativas do estilista. Mas fora deles, a jovem não abre mão de sua identidade e sua agência sobre sua história. E o maior mérito de “Trama Fantasma” é como a personagem é bem escrita, sempre enxergada em pé de igualdade com Woodcock. E como Vicky – atriz de Luxemburgo de 34 anos, que apareceu em longas como “Hanna” e “O Jovem Karl Marx” – encara os veteranos Day-Lewis (que passou dois anos aprendendo a costurar) e Manville sem medo, roubando o filme deles e seduzindo tanto Woodcock quanto o espectador.

Uma cena em que ela cozinha trocando olhares com o estilista, que a observa em silêncio, é sem dúvida uma das mais bem dirigidas e encenadas do ano. O longa é um duelo entre quem é vertical e quem é horizontal, quem cria e quem é criado – e o fato de que a história é narrada a partir das memórias de um dos personagens não é nada por acaso e diz muito do resultado desse embate.

Anderson encena isso com a segurança e a elegância clássica de seu protagonista, apoiando-se na belíssima trilha de Jonny Greenwood para referenciar os romances góticos que busca subverter, como “Rebecca, A Mulher Inesquecível”. É no uso de elementos como escadas e olhares para estabelecer as relações de poder entre os personagens, porém, e na encenação de momentos banais como uma tomada de medidas, que ele mostra para onde sua atenção está voltada: para quem cria essas histórias e para o olhar que é dirigido nelas a suas mulheres. E o que acontece quando se dá a essas personagens femininas o direito de olhar de volta com a mesma complexidade e perversidade de seus criadores.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!