Um trauma marcou as primeiras relações de Alceu Valença, 73, com as artes. Nascido em São Bento do Una, no agreste meridional de Pernambuco, o músico viveu na cidade até os 7 anos, antes de se mudar, com a família, para a capital Recife. No pequeno município de 5 mil habitantes, havia dois cinemas, três grupos de teatro e uma banda de música. “Era uma cidade amiga da arte”, descreve.

“E havia também a cultura popular dos cantadores, poetas, cordelistas, violeiros, coquistas e improvisadores; dos cegos cantores de feira e dos aboiadores que tangiam o gado com sua cantigas de forte influência mourisca. Tudo isso faz parte da minha formação primal, são os mesmos elementos que Luiz Gonzaga utilizou para formatar, por exemplo, o forró e o baião”, conta.

Para completar, na fazenda do avô de Alceu aconteciam diversos saraus, que reuniam “gente de toda a região”. A dupla de violeiros Patativa e Azulão era formada pelo avô com um tio de Alceu. Certa vez, ainda criança, Alceu pegou um pandeiro e começou a improvisar. Porém, a reação não foi a esperada.

“Meu avô gritou: ‘tragam outra pessoa para tocar, porque esse menino não tem ritmo!’”, recorda. “Passei grande parte da minha infância e adolescência acreditando naquilo. Levou bastante tempo até que eu pudesse dizer: ‘vovô Orestes, o senhor estava enganado! Seu neto tem muito ritmo, viu?’”, diverte-se. 

Amizade

Superado o trauma, o cantor engatou uma das mais bem-sucedidas carreiras da música brasileira, repleta de sucessos populares como “Morena Tropicana”, “La Belle de Jour”, “Girassol” e “Anunciação”, muitas delas com referências a outras áreas do “pensamento sensível”, definição do filósofo alemão Alexander Baumgarten (1714-1762) para a estética e a arte. 

“Foi minha mulher, Yanê, quem descobriu em minha obra diversos elementos ligados à filosofia, à literatura, ao cinema e às artes plásticas. Eu meio que incluí estes elementos de uma maneira quase inconsciente em muitas de minhas canções”, admite Alceu. Dessa relação, nasceu o espetáculo “Amigo da Arte”, que o cantor apresenta nesse domingo (3) em BH. Em 2014, ele colocou na praça um disco com o mesmo nome. 

“Tenho músicas que falam de autores como Miguel de Cervantes, Fernando Pessoa e Mario Quintana; ou de personagens da literatura brasileira, como Macunaíma, João Grilo e Malasartes”, observa. Um exemplo é “Agalopado”, de 1977, que diz: “Dom Quixote liberto de Cervantes/ Descobri que os moinhos são iguais”. A mesma letra cita as obras dos mineiros Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, no verso: “Viro pedra no meio do caminho/ Viro rosa, vereda de espinhos”. 

Já a dolorida “Na Primeira Manhã” traz uma homenagem a Rubem Braga, ao relembrar “O Conde e o Passarinho”, uma das crônicas mais conhecidas do jornalista. “É um escritor que admiro demais”, elogia Alceu. Mas a literatura está longe de ser a única contemplada. “Embolada do Tempo” remete à máxima do sociólogo Gilberto Freyre, conterrâneo do intérprete, que considerava o tempo tríplice. “Vivemos presente, passado e futuro, todos ao mesmo tempo”, avalia o entrevistado, que agradece as aulas de filosofia que teve com a professora Bernardete Pedrosa, na faculdade de Direito, em Recife. “Virei um questionador da alma humana”, orgulha-se. 

Visão

Ele acendia um cigarro e passava o polegar sobre os lábios. A mania do personagem de Jean Paul Belmondo no filme “Acossado” (1960), de Jean-Luc Godard, era imitada por Alceu ao sair das sessões que exibiam películas do Neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa no cinema São Luiz, em Recife. 

Segundo o compositor, ele era “tímido com as garotas e, nessa época, possuía uma grande semelhança física com o protagonista de ‘Acossado’”. “As meninas diziam: ‘olha lá, o ator do filme’”, garante. A cinefilia influenciou um dos grandes hits de Alceu, com uma história bem inusitada. Ele estava em Paris na década de 80, quando conheceu a atriz britânica Jacqueline Bisset, considerada símbolo sexual e protagonista de “A Noite Americana”, de François Truffaut. 

“Fiquei deslumbrado com sua presença, me apresentei e dei um ‘poema em branco’ para ela”, relata Alceu, sem explicar a expressão carregada de lirismo. Acontece que o músico se confundiu e pensou estar diante de Catherine Deneuve, a musa de “A Bela da Tarde”, de Luis Buñuel. O título original do longa-metragem, em francês, batizou a famosa canção “La Belle de Jour”. 

Outro sucesso por pouco não ficou na gaveta. Hospedado em São Paulo, o cantor se inspirou em uma pintura de Sergio de Lemos, que foi casado com sua irmã, Delminha, para criar a letra de “Morena Tropicana”, com melodia de Vicente Barreto. “O quadro é uma natureza morta com frutas tropicais que está até hoje na sala da minha casa, em Olinda”, revela Alceu, que diz que “a letra saiu inteira, em poucos minutos”. 

Apesar disso, ele teve dúvidas sobre a qualidade dos versos, e depositou o manuscrito em um pequeno vaso que havia em seu quarto. Ao retornar de um show, deu voz à canção com o parceiro e se convenceu de que ele era “realmente muito boa”. Esse impulso criativo continua. No próximo dia 11 de novembro, Alceu lança “Eu Vou Fazer Você Voar”, inédita com Hebert Azzul. “Componho com muita facilidade. Surge a inspiração, eu assovio o tema e gravo um esboço”, conclui. 

Serviço

Show de Alceu Valença, neste domingo (3), às 19h, no Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537). De R$ 55 (meia) a R$ 150 (inteira)