“Se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário”. Há um século nascia o autor dessa frase, no primeiro dia do mês de janeiro. E, neste domingo (27), completa-se nove anos que J.D. Salinger (1919-2010) deixou o mundo do qual sempre fugiu, livre dos aplausos dos bobalhões.

O trecho destacado pertence a “O Apanhador no Campo de Centeio”, o mais célebre romance do escritor norte-americano nascido em Nova York, que morreu em New Hampshire, na fazenda que escolheu como seu refúgio. Embora tenha afirmado numa das raras entrevistas que concedeu que guardava 15 livros inéditos, foi o romance publicado em 1951 que marcou definitivamente a obra de Salinger, alcançando mais de 75 milhões de vendas no mundo todo até hoje.

Ao best-seller seguiram-se a coletânea de contos “Nove Histórias” (1953); “Franny & Zooey” (1961), com duas novelas curtas; e “Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour, uma Introdução” (1963), até que Salinger decidiu nunca mais publicar, em 1965, quando pela última vez o público teve acesso a uma novela inédita de sua autoria, nas páginas do jornal “The New Yorker”.

“Salinger rompeu com o conservadorismo no texto, escancarou uma nova rota para a literatura. Sua ousadia, publicada pela primeira vez há 73 anos, pode servir de contraponto para os dias de reacionarismo que se anunciam no Brasil”, analisa o escritor Luís Giffoni, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance em 2002 por “Adágio para o Silêncio”. O primeiro contato de Giffoni com a escrita de Salinger foi ao cursar literatura norte-americana no Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos (ICBEU). No segundo ano, a leitura de “O Apanhador no Campo de Centeio” era obrigatória. “Eu era adolescente e senti o impacto da história de um garoto como eu, perdido numa cidade fria e hostil”, recorda.

Estilo

Holden Caulfield, protagonista do romance, é um adolescente de 17 anos que acaba expulso de um internato para gente rica e, então, volta a Nova York, mas, por não ter coragem de enfrentar a família, passa um final de semana perambulando pela cidade, tentando encontrar um rumo para a sua existência. “A identificação com o personagem é a chave para o sucesso do livro entre os adolescentes, que costumam viver fases de solidão em meio a multidões”, observa Giffoni.

Outro fator apontado por ele é justamente a linguagem. “Salinger inovou ao trazer a coloquialidade e os palavrões para dentro do texto. Segundo um líder religioso, detrator de ‘O Apanhador’, são 228 expressões execráveis”, conta. O diretor Oswaldo Caldeira, que em 1987 adaptou para o cinema “O Grande Mentecapto”, de Fernando Sabino – algo que Salinger jamais permitiu com seu best-seller –, vai na mesma linha.

“Vejo uma concisão e um permanente mistério, a ausência de arroubos literários e nenhum pedantismo”, enaltece Caldeira. O ator Alexandre Toledo compartilha a opinião. “O texto é muito fluido, enxuto, não tem floreios. Não é uma escrita simplória, mas é muito direta”, declara Toledo.

Permanência

Poeta, Simone Teodoro era estudante de letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) quando “O Apanhador no Campo de Centeio” a atraiu “pelo título estranho”. “Li e achei diferente de tudo”, afirma. Para ela, a própria narrativa garante a perenidade da obra. “As temáticas são muito atuais: ceticismo, isolamento, melancolia, curiosidade sexual”, enumera. “Nas economias capitalistas, em que estão sempre exigindo que a gente cresça, encontre um trabalho e forme família, a fase em que não se é criança e nem adulto é pura angústia”, diz.

O escritor Afonso Borges dá mais combustíveis para essa tese. “É um relato que acerta fundo na estrutura frágil do ser humano que busca um lugar no mundo. Ele permanece por isso, o que, vale dizer, é uma característica dos textos clássicos”, conclui.

 

Crimes tornaram a obra controversa

Se a própria personalidade de J.D. Salinger era controversa, com o exílio voluntário numa fazenda no interior dos Estados Unidos e a decisão de nunca mais publicar um livro a partir de 1965, sua obra mais consagrada se viu envolta em episódios perturbadores.

O trágico assassinato de John Lennon em 1980 foi o primeiro. Marc Chapman, autor dos disparos, carregava o livro e disse ter se inspirado no protagonista do romance para cometer o crime. A poeta Simone Teodoro contesta esse álibi. “Holden é rabugento, melancólico e rebelde. Mas sua rebeldia nada tem a ver com violência. Ao falar de desejos para o futuro, ele afirma que gostaria de ser aquele que vai impedir a queda de crianças que brincam num campo de centeio que fica no alto de um penhasco”, informa Simone.

Em 1981, John Hinckley tentou matar o presidente norte-americano Ronald Reagan e também portava o livro, assim como Robert John Bardo, que matou a atriz Rebecca Schaeffer, em 1989. “Isso criou um folclore, uma mitologia a mais em cima da obra”, finaliza o jornalista Afonso Borges.