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"Binômio": o maior legado de Zé Maria

Como dizia o co-fundador do tablóide Euro Arantes, era uma brincadeira de estudante que a polícia resolveu levar a sério

Por MARCELO FIUZA
Publicado em 14 de setembro de 2007 | 22:25
 
 
 
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Em 60 anos de jornalismo, militância política e envolvimento com grandes questões sociais brasileiras, o maior legado de José Maria Rabêlo chama-se "Binômio", jornal que entre 1952 e 1964 circulou pelas ruas de Belo Horizonte e, a partir de 1958, por Juiz de Fora. Nos 12 anos de circulação, o "Binômio" marcou época, revelou talentos como Ziraldo, Fernando Gabeira e Wander Piroli, contou com colaboradores como Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, desbancou a tradicional e imutável imprensa mineira com tiragens cada vez maiores e, até ser fechado pelos militares em 1964, foi um libelo contra desmandos políticos e empresários corruptos.

Até a última hora, sem perder o humor. Tudo isso a partir da romanesca aventura de dois jovens jornalistas, o dito Zé Maria e seu colega na redação do "Informador Comercial" (mais tarde "Diário do Comércio"), Euro Arantes, já falecido - o que esperar de um jovem idealista que em sua cidade natal, Ubá, publicava ainda estudante, um pasquim intitulado "O Escorpião"?. Pois juntos criaram inicialmente um tablóide semanal que ironizava, já no nome, Juscelino Kubitscheck, eleito governador mineiro com a plataforma do binômio energia e transporte. O binômio do jornal homônimo era "sombra e água fresca".

Em seu número de estréia, em 17 de fevereiro de 1952, dizia a que vinha, no editorial "Duzentas e sessenta e nove palavras ao leitor", no qual afirmava ser um jornal diferente, sincero e honesto. "Não é independente como dizem ser todos os outros colegas, mas é quase independente, como nenhum de nossos colegas consegue ser", publicou-se. E concluía que tal independência viria do fato de não aceitar publicidade governamental, de estatais e das empresas do "banqueiro tarado" Antônio Luciano, o dono do banco Financial e de uma rede de cinemas que, segundo ele, se tornou notório sedutor de donzelas.

"A moderna imprensa alternativa brasileira teve três momentos importantes. O primeiro foi ’A Manha’, de Apparício Torelli, o Barão de Itararé (1895-1971), um gênio humanista e cientista que deixou ótimas frases", conta Zé Maria, sobre a publicação que circulou no Rio a partir de 1926 e na qual Torelli cunhou frase antológicas, como "todos são iguais, alguns são piores".

"Em seguida, veio o ‘Binômio’, que dominou a imprensa mineira de 1952 a 1964. Foi uma experiência rica de fazer humor panfletário. E, a partir de 1970, veio o revolucionário ‘Pasquim’. Dos três tiramos lições importantes que serviriam de rumo para a imprensa: independência, coragem, inovação e inteligência", completa Zé Maria.

Três fases distintas
Nos 12 anos de circulação, o "Binômio" teve três fases distintas. A primeira, marcada pela linha oposicionista e de humor político, durou até 1956 e coincidiu com administração de JK frente ao governo estadual. "Um jornal de estudantes que a polícia resolveu levar a sério", como dizia Euro Arantes. Entre as tiradas do jornal está a série de ficção "A História Secreta dos Amores de Nonô", que fala da infância de um certo jovem sedutor em Diamantina - todos sabiam que Nonô era o apelido de JK.

Também saiu nesse período a antológica foto do governador segurando uma cadeira na cabeça, de Rodolfo Rosa, publicada invertida em 6 de junho de 1952 com o título "Governador plantando bananeira". Dessa época saem manchetes como "JUSCELINO FOI A ARAXÁ E LEVOU ROLLA", assim, em caixa alta, referindo-se ao empreendedor Joaquim Rolla e que causou apreensão da tiragem pela polícia em função do duplo sentido do título.

O "Binômio" retrucou com uma edição "imprópria para menores de 18 anos" e que só trazia notícias escandalosas já publicadas por outros jornais, entre elas um editorial de Assis Chateaubriand intitulado "A única coisa que Getúlio quer: deitar-se na cama com o brigadeiro". Na segunda fase acentuou-se o aspecto panfletário do jornal e, consequentemente, as perseguições do governo Bias Fortes, a ponto de as gráficas mineiras se recusarem a imprimir o "Binômio" e ele ter que ser rodado no Rio de Janeiro - inclusive, em duas cores.

A cada edição, a tiragem era maior. Por fim, a terceira etapa durou de 1961 ao fechamento, em 1964, e caracterizou-se pelas grande reportagens. O jornal encampou a campanha pelas reformas de base e participou ativamente da discussão política e ideológica que tomou conta da vida brasileira durante os governos dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart. Não só política, estavam em pauta também grandes temas sociais.

O escritor Roberto Drummond, por exemplo, à época repórter, foi ao Norte de Minas e literalmente comprou, por US$ 200, de um traficante, um casal de nordestinos escravos para a reportagem-denúncia Comércio de Seres Humanos. Assinada por A. Ponce de Leon, a série sobre ódio racial contra negros e judeus denunciava a discriminação em hotéis, clubes e colégios de Belo Horizonte e resultou em CPI na Assembléia Legislativa.

Furo mundial, o "Binômio" conseguiu, através do jornalista e radialista Osvaldo Faria, entrevista exclusiva em San Quentin, na Califórnia, com Caryl Chessman, o famoso Bandido da Luz Vermelha, pouco antes de ele ir para a câmara de gás. Entre 1960 e 1963 fez também ampla cobertura da revolução cubana, denunciou a morte de Kennedy como golpe de Estado e apontou o passado fascista do general Punaro Bley, o que resultou no primeiro empastelamento do jornal.

O "Binômio" também foi o primeiro a denunciar o complô que resultaria no golpe militar de 64. "Infelizmente não conseguimos impedir o golpe, mas emplacamos a campanha do Petróleo é Nosso". Infelizmente, também não conseguimos fazer a reforma agrária, impedir as privatizações ou melhorar essa vergonhosa distribuição de renda", avalia Zé Maria, sobre pautas que, passados 40 anos, ainda são atuais.

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