Entrevista

Cronista de outonos selvagens

Flávio Renegado, cantor e compositor

Por Lucas Buzatti
Publicado em 17 de julho de 2016 | 03:00
 
 
 
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Nascido no Alto Vera Cruz, em BH, o artista vem cursando uma trajetória sólida na música autoral. Aos 34 anos, acaba de lançar novo disco, “Outono Selvagem”, que mistura o rap com vertentes como o rock e o reggae, com letras contundentes contra o preconceito racial e outras mazelas. Ele se prepara ainda para fazer de sua antiga casa na comunidade a sede da ONG Arebeldia.

Vamos começar falando sobre o “Outono Selvagem”, seu terceiro álbum de estúdio. Me conte um pouco sobre a concepção do disco.

Estou encarando o “Outono Selvagem” como um disco de virada de ciclo. Um disco mais maduro. Eu acho que “Do Oiapoque a Nova York” e “Minha Tribo É o Mundo” são discos de quem estava querendo conhecer o mundo, de quem estava querendo alcançar coisas que eram mais difíceis de se conectar. O “Outono Selvagem” veio num momento de maturidade maior, humana e artística. Eu tô querendo entender mais da humanidade, do ser humano, dos valores que estão cada vez mais em queda na nossa sociedade. É um disco que olha mais para dentro. Não para dentro de mim, apenas, mas para dentro da gente enquanto sociedade. É um disco que sai desse olhar externo, do físico, do material, e começa a se preocupar com outros valores.

O disco é marcado por outras linguagens, que não só o rap. Tem rock, samba, reggae...

São estilos que me influenciam e que, agora, eu posso fazer com mais propriedade. Tem blues, rock, samba, reggae. Ele dá essa caminhada para outros lugares, para ritmos que estou desenvolvendo uma familiaridade maior. Estou mais próximo, mais perto. Entendendo melhor esses estilos.

Você fala desses gêneros, mas me conte: o que o Flávio Renegado escuta em casa?

Cara, de tudo. De Luiz Gonzaga a Sepultura. Eu acho que o que chegou mais tardiamente ao meu convívio foi essa pegada mais blues, mais rock, que são coisas que eu tenho me apaixonado cada vez mais.

“Outono Selvagem” tem muitas músicas em que você canta linhas melódicas bem diferentes do flow do rap. É um disco que traz um Renegado mais cantor?

Acho que ele reforça esse lado cantor. Desde “Do Oiapoque a Nova York” já venho traçando essa caminho, de abrasileirar mais o rap. De tornar o gênero mais brasileiro, um produto nacional, vamos dizer assim. E o “Outono” é um disco que caminha por essa onda, por esse universo da canção, da rítmica brasileira. Reafirma esse momento do rap no Brasil, que está tentando achar sua linguagem, seu corpo, seu formato.

Outro ponto que chama a atenção são as participações: Samuel Rosa, Diogo Nogueira, Sérgio Pererê, Alexandre Carlo (Natiruts) e Joana Rochael. Como aconteceram essas parcerias?

Por afinidade. São amizades construídas que transporto para o universo da música. O Samuel, o Diogo, sempre ficamos naquela de fazer uma parceria, mas a amizade veio primeiro. E a gente conseguiu transcrever isso para a música. Estou honrado com todos eles e, ao mesmo tempo, muito feliz de apresentar a Joana, que tem um supertalento, uma nova voz, primeira vez que grava. É o meu disco mais coletivo, inclusive nas composições, com parceiros como Chico Amaral, Gabriel Moura, Makely Ka, Jana Lourenço. Coletivizar é a próxima questão de ordem da humanidade. Esse é o caminho.

Uma diferença para os outros álbuns é que você assina a produção do disco. Como foi esse processo?

Eu fiquei tão dentro do disco, tão mergulhado nele. Porque esse processo da composição, das escolhas, já estava tão amarrado na cabeça, por onde caminhar, quais os lugares que eu queria acessar com ele que batemos um papo e eu decidi que ia assumir essa produção musical. E a gente achou que realmente valeria a pena trazer essa assinatura um pouco mais forte mesmo, do início meio e fim do disco. E foi um processo riquíssimo. Pude trocar mais com a banda, pude trocar mais com os parceiros.

As letras tratam de assuntos espinhosos, como o racismo, a violência policial, a intolerância religiosa, o machismo e a homofobia. Como você chegou a esses temas?

Nunca me furtei de trazer esses debates para dentro do meu trabalho, muito pelo contrário. Mas eu busco também fazer tudo de uma forma muito respeitosa. Porque eu entendo que eu posso ser sensível a vários desses temas, como a coisa do machismo, mas eu não posso falar pela mulher, tá ligado? Mas eu gosto de levantar a bola pra gente bater um papo, trocar uma ideia. E acho que isso é até um papel nosso enquanto cronistas dessas cidades malucas onde vivemos. Agora, outros temas como a questão racial, eu já falo com mais propriedade, até de forma mais feroz em alguns momentos. Porque é isso. São temas que a gente, enquanto sociedade, resolveu bem. Precisamos trazer essa bola para o chão e bater um papo mais franco. Porque é incabível ter gente festejando o fim do ProUni, por exemplo. Entra um governo provisório, que acaba com o Minha Casa Minha Vida, que atinge diretamente a população menos favorecida. E a gente deixar isso passar batido, não falar, não discutir, não dá. E olha que, quando eu fiz o disco, o golpe nem tinha acontecido. E a parada surge como se fosse quase uma profecia, e isso dá medo. Ficava pensando em onde podemos chegar, e nós chegamos. Esse que é o problema. A gente está menos amigo, menos parceiro. Preocupado só com o nosso. Só quer ter. E aí? Como diz Gandhi: “enquanto for olho por olho, vamos acabar cegos”.

Você rodou o Brasil recentemente, lutando contra o impeachment da presente Dilma Rousseff. Como recebeu a notícia de que ela havia sido afastada?

Eu vi como golpe, né mano. Porque é o que aconteceu. Fico triste de ver meus vizinhos sofrendo mais e mais com esse tipo de postura que não agrega, que não traz benfeitorias para a população. E me preocupa, de verdade. Quando eu digo “outono selvagem”, falo do momento que estamos passando no Brasil. E espero que o inverno não seja tenebroso. Porque aumenta desemprego, aumenta inflação, e quem sofre isso diretamente é quem tá na ponta. Quem está nas comunidades, nos guetos. E a gente não pode ficar inerte a isso. Sempre foi parte do meu trabalho lutar.

Tanto que, na Virada Cultural de BH, o contrato tentou impedir os artistas de fazerem manifestações políticas no palco. O que não te impediu de vestir uma camiseta com o “Fora, Temer” estampado.

A ditadura acabou, mano. A gente não aceita nada que seja menos do que avanço. É simples. E a reação do público foi o mais legal. A gente viu que o senso crítico está aumentando cada vez mais.

Você vem do Alto Vera Cruz, um berço periférico de talentos musicais. Como é sua relação, hoje, com a comunidade?

Sou nascido e criado no Alto Vera Cruz. Tenho um amor imenso por essa comunidade. É meu berço, minha escola. E fico feliz de poder espalhar o nome da comunidade pelo mundo. Lá é um caldeirão de cultura, de agentes artísticos, de manifestações, de pessoas que estão lutando para poder melhorar o mundo. Fico muito honrado de estar junto com esses iguais na luta. As novas lideranças que estão na comunidade todas têm essa relação com a cultura e com a arte. Isso é bem legal, porque a gente conseguiu trazer sensibilidade para um ambiente bruto, que é o ambiente dos movimentos sociais nas periferias. 

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