Música

Doutor em liberdade musical

Hermeto Pascoal lança “No Mundo dos Sons, primeiro disco de estúdio em 15 anos, e homenageia amigos e cidades

Por Raphael Vidigal
Publicado em 11 de setembro de 2017 | 03:00
 
 
 
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“Garoto, você está com muita liberdade comigo, não sabe que agora eu sou doutor?”. O irreverente Hermeto Pascoal, 81, não demora a descer a cortina de sua brincadeira durante a entrevista. Consagrado Doutor Honoris Causa pela New England Conservatory de Boston, nos Estados Unidos, em maio, o músico não esconde sua reticência quanto a esse tipo de título.

“Foi uma festa, fiquei feliz pra danar. Fui lá e aceitei por um motivo: essa não é uma faculdade como a Berklee (também de Boston), com todo o respeito, ela está muito mais adiantada. É a maior dos Estados Unidos porque tem uma didática totalmente livre de composição. Como vou ensinar padrões de harmonia para as pessoas? Isso atrapalha a criatividade. Cada um tem o seu dom, não tem essa de dizer que um está certo e o outro errado”, considera Pascoal, que acaba de lançar o seu primeiro CD de estúdio em 15 anos – o último havia sido “Mundo Verde Esperança”, em 2002.

Indo ao encontro da expansividade criativa do entrevistado, o sucessor de “Bodas de Latão” (2010), registro ao vivo com Aline Morena, enfileira 18 faixas inéditas e autorais em álbum duplo concebido com sua banda. “No Mundo dos Sons” é uma miscelânea de homenagens daquele que já foi chamado de “bruxo” por alguns e gênio por tantos outros, como no caso de Miles Davis, um dos que recebe tributo.

“Não premedito nada, as coisas me acontecem. Estou tocando e de repente vem na cabeça o Edu Lobo, isso que é bonito, porque a gente nunca imaginou isso, vivemos longe um do outro, mas nos gostamos. Sou 100% intuitivo, minha música é uma impulsão”, define o alagoano. Além de Lobo e Davis, destacam-se canções oferecidas para Tom Jobim, Astor Piazzolla, Sivuca, Ron Carter e outros amigos de som do instrumentista.

“Sempre que encontrava com o Tom no aeroporto, ele vinha falar bem de perto comigo, porque sabia que não enxergo bem. Na última vez, ele estava indo para Nova York e a gente conversou sobre a vontade de dar uma volta pelo Brasil, que é o mundo universal da música”, assinala. O músico aproveita a oportunidade para relembrar a admiração do “maestro soberano” pelo Quarteto Novo, grupo do qual Pascoal fez parte ao lado de Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira na década de 60.

“De outra vez, encontrei o Piazzolla indo para a Espanha, e ele ficava me dando sinal de longe, levantando a mão, balançando, numa alegria só. Tenho umas lembranças lindas”, afirma. No entanto, talvez seja com os nomes menos conhecidos do grande público que Pascoal ainda se emocione mais. “Mazinho foi o primeiro saxofonista do grupo, adoro a música que fiz para ele (“Mazinho Tocando no Coreto”). Nós todos somos uma família, as pessoas saem para fazer seus trabalhos, porque todos temos condições de criar maravilhas sem precisar imitar. Digo que a percepção de cada um é interna, única, então precisamos usar isso. Sejam vocês mesmos, é maravilhoso”, aconselha.

Além de pessoas, cidades e Estados também foram contemplados nas notas do músico, como comprovam “Viva São Paulo!” e “Salve Pernambuco Percussão!”. “Não adianta querer padronizar tudo com prédios, cada lugar tem sua alma, tudo é semelhante, mas nada é igual, Deus não é bobo, parece conversa mole, mas é a verdade. Já pensou as estrelas, nuvens, montanhas, todas do mesmo tamanho?”, questiona.

Anjo. Dentre tantas celebrações, uma em especial parece tocar bem fundo o coração do músico. “Rafael Amor Eterno”, que encerra o trabalho, foi composta para o bisneto de Pascoal, falecido em 2016, com apenas 3 anos, em razão de um mal súbito depois de nadar na piscina. “Fomos passear num dia de domingo. Pouco antes dele subir aos céus, disse que estava cansado. Temos que acreditar nas crianças, na espontaneidade delas. Podemos chorar, mas não de tristeza, só de saudade”, ensina.

Ao entrar no estúdio, o músico teve a ideia de usar um áudio com a voz do menino, que dizia: “eita vovô”. A faixa é a única em que o experimentalismo conhecido de Pascoal dá lugar a um único piano, realçando a sofisticação e o domínio harmônico do compositor. “Conheço da espiritualidade, tive uma coisa intuitiva maravilhosa, já estava na mixagem do disco quando corri para o piano, fiz bonito ali, na hora, desandei a chorar, mas com muita alegria para o nosso anjo”, diz.

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