A primeira vez em que Elba Ramalho, 67, cantou em disco não havia o nome dela na capa. Mas o anfitrião era daqueles de quem não se recusa um convite. A estreia aconteceu no álbum que Chico Buarque lançou em 1978. O dueto em “O Meu Amor” com a atriz Marieta Severo (mulher de Chico à época) seria repetido com sucesso, um ano depois, na peça “Ópera do Malandro”.

Decorridas quatro décadas, Elba cunhou assinatura própria na música brasileira, mas ela ainda faz questão de desbaratinar as cucas acostumadas ao óbvio. Pelo menos é essa a intenção de “O Ouro do Pó da Estrada”, seu 38º disco, que ela lança agora.

“Eu poderia passar a vida cantando ‘Banho de Cheiro’, ‘Bate Coração’ e ‘O Xote das Meninas’, fazendo um show só com sucessos e enriquecendo. Mas não é essa a minha proposta. Quero me desafiar e me renovar. A música me serve para isso”, diz.

De fato, no novo trabalho, Elba foi procurar canções contemporâneas que se ajustassem a seu gosto pela diversidade. Os arranjos percorrem do frevo ao rock, com paradas obrigatórias no xote e no baião, até flertes com a música orquestral. O ritmo também não deixa barato. Tem música para dançar agarradinho, pular com vontade e até desfrutar quieto diante da densidade das letras.

É esse o exemplo de “Na Areia”. Mas, no caso, Elba não foi atrás da música, já que foi exatamente a cantora a inspiração para os versos e melodias compostas pelo pernambucano Juliano Holanda. “Ele fez essa música observando o caminho que percorri até aqui, é sobre a minha postura e a história que tenho”, confirma ela.

Com delicadeza, cada palavra vai desenhando os contornos deixados pela artista: “Tenho andado tão serena/ sinto bem meus pés no chão/ trago o sol nos meus cabelos/ e o luar nas minhas mãos”. “O tempo tem sido generoso comigo, a gente aprende a lidar com ele e a envelhecer”, reflete Elba.

Essa riqueza de imagens é um trunfo que se repete ao longo do CD, atualmente apenas nas plataformas digitais, mas com previsão de chegada ao formato físico em janeiro. A própria canção-título capturou o coração de Elba também por esse sentido. “Achei linda esta expressão: ‘o ouro do pó da estrada’. Porque é isso o que fica mesmo, o pó por onde a gente passa. Artista que não gosta de estrada está na profissão errada”, observa.

Já em “Calcanhar”, faixa de abertura composta por Yuri Queiroga com Manuca Bandini, ela decidiu trazer à tona o espírito que a revelou ao mundo como artista. Na segunda parte da canção, Elba recita um texto de Bráulio Tavares, que determina: “Na beira do mundo querendo voar”. “Essa minha verve performática, de atuação, não quero perder nunca. É isso o que as pessoas esperam de mim quando vão a um show, sabem que vão encontrar a mesma entrega e energia numa música para dançar e numa letra densa, como nos textos de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e do Bráulio Tavares que eu venha a declamar”, sustenta Elba.

Outra faixa, de Lula Queiroga, parece condensar essas duas características, tão presentes na trajetória de Elba. Como se não bastasse, “O Girassol da Caverna” ainda conta com o auxílio luxuoso de Ney Matogrosso nos vocais. “Quando eu ouvi essa primeira frase da música, que é ‘holofote riscando a treva aberta’, pensei no Ney imediatamente. Mandei para ele e falei que, se não gostasse, não precisava gravar. Mas ele adorou”, conta Elba, que aproveita o ensejo para realizar a nobre tarefa de criticar e enaltecer ao mesmo tempo. “Gravei essa música também porque eu acho que a música brasileira anda carente de letras como essa. A gente tem visto umas coisas muito sem consistência, com uma subpoesia”, detecta.

O depoimento da cantora tem lastro. Ao longo de 40 anos dentro dos estúdios de gravação, ela pôde emitir com suas privilegiadas cordas vocais os sentimentos musicais de autores como Dominguinhos, Fausto Nilo, Belchior e Luiz Gonzaga, que ela volta a interpretar nos números “Além da Última Estrela”, “Princesa do Meu Lugar” e “O Fole Roncou”. A escolha desse repertório, que agrega de clássicos a inéditas, revela outra obstinação de Elba, a de manter sua profunda e umbilical ligação com o Nordeste. “Minhas raízes são uma espécie de bússola. Eu me formei ouvindo, cantando e conhecendo essas pessoas, tudo que faço está impregnado pelo Nordeste, pode ser MPB, rock, samba, frevo ou baião”.

 

Cantora fala do momento político

No texto de apresentação do novo álbum de Elba Ramalho, a cantora Zélia Duncan é taxativa: “Que sorte, Brasil, a música brasileira vai te salvar!”, escreve. Mesmo lisonjeada, Elba discorda. “No meu entender, a música brasileira sempre nos salvou, mas estamos precisando de mudanças, e espero que o novo governo dê certo, não sou de torcer para dar errado”, diz.

Para ela, um dos valores a serem defendidos é o da diversidade. “Desde que sou pequena, entendi que existem o encarnado e o azul, que a pessoa pode gostar de uma cor e eu de outra, e isso não é motivo para ninguém se atacar”, defende Elba, que rechaça partidarizar sua música: “Minha política é a minha arte, o meu canto e o texto das canções”, afirma.