"Lion"

Googlando uma vida perdida

Baseado em história real, produção australiana foi indicada a seis Oscars

Por Daniel Oliveira
Publicado em 16 de fevereiro de 2017 | 03:00
 
 
 
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“Lion – Uma Jornada para Casa” é um filme sobre um vazio. Um buraco que começa a se abrir dentro do protagonista logo no início do longa que estreia hoje, e vai se tornando cada vez maior com o passar da história. Até se tornar tão insuportável que ele não tem escolha a não ser encontrar alguma forma de preenchê-lo.

E o maior mérito do longa de estreia do diretor Garth Davis (da ótima minissérie “Top of the Lake”) é traduzir isso visualmente, ainda que patine em termos dramatúrgicos na metade final. Seu filme é uma realização técnica segura e promissora para um estreante, mesmo não tendo a ousadia para se aprofundar nos temas mais espinhosos contidos na história real do protagonista.

Ele é Saroo, vivido na infância pelo adorável Sunny Pawar. Junto com o irmão Guddu (Abhishek Bharate), os dois passam grande parte do tempo na estação de trem de sua cidade no Norte da Índia, fazendo pequenos bicos e golpes para conseguir comida. Numa noite, Saroo se perde do irmão, vai procurá-lo dentro de um trem, acaba dormindo lá dentro e só acorda quando ele já está em movimento.
O protagonista atravessa quase todo o país e chega a Mumbai, que fala um dialeto diferente do seu. Sem conseguir se comunicar ou explicar de onde veio, ele passa a viver nas ruas até ir para um orfanato e ser adotado por um casal australiano, John e Sue Brierley (David Wenham e Nicole Kidman).

A performance do pequeno Pawar nessa meia hora inicial, quase silenciosa, é um daqueles pequenos milagres do cinema. O desespero impotente e a esperança inocente em seu olhar, potencializados pela desorientação da fotografia escura e ágil de Greig Fraser (“Foxcatcher”), vai partir seu coração em mil pedaços – e é um feito admirável da direção de Davis.

E é por isso que, quando “Lion” salta no tempo e Dev Patel (“Quem Quer Ser um Milionário?”) assume o personagem, o filme inevitavelmente cai de produção. Já adulto, Saroo decide resolver esse vazio que carrega dentro de si e ir atrás de sua família biológica. Sem lembrar o nome de sua cidade natal, ele recorre ao Google Earth na esperança de reconhecer a estação e sua vizinhança nas imagens.

Davis e Patel fazem o que podem para tornar essa busca dramaturgicamente dinâmica, com a ajuda dos enquadramentos de Fraser que se confundem com as imagens do aplicativo. Mas Saroo não revela o que está fazendo para ninguém, e o buraco que existia entre ele e o resto do mundo deixa de ter a singeleza da hora inicial e passa a ser quase irritantemente patológico.

E isso é piorado pelo fato de que o roteiro de Luke Davies nunca se aprofunda de verdade no que aconteceu com o protagonista ao ser adotado. Ele cai num mundo de privilégio, mas perde (ou sublima) grande parte de sua identidade nesse processo. E “Lion” só toca superficialmente nos efeitos bárbaros dessa aculturação, deixando-a à margem na história pouco desenvolvida do irmão adotivo de Saroo.

Com isso, cabe exclusivamente à performance de Patel trazer tudo isso à tona, mas o ator não tem uma dramaturgia suficiente a seu dispor para dar conta do recado. A inexperiência de Davis peca ainda na resolução brusca e pouco satisfatória do longa, que não tem tempo bastante para responder às questões e à expectativa emocional criada até ali. Prova disso é que o diretor deixa a informação mais impactante e devastadora da busca de Saroo para um letreiro no final. São falhas que não comprometem “Lion” fatalmente, mas impedem que ele deixe de ser uma mera história instigante de “interesse humano” e seja um grande filme e um retrato contundente da realidade que aborda.

FOTO: Diamond / divulgação
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Busca. Dev Patel foi indicado ao Oscar de ator coadjuvante pelo filme

 

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