Entrevista

Maestria nas letras e na música

Para Ana Maria Clark Peres, pesquisadora da obra de Chico Buarque, a composição e a escrita são duas faces indissociáveis do ofício do artista

Por Carlos Andrei Siquara
Publicado em 10 de dezembro de 2017 | 03:00
 
 
 
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Ana Maria Clark Peres

Pós-doutora em literatura e escritora

Pesquisadora da obra de Chico Buarque, a professora e autora do livro “Chico Buarque: Recortes e Passagens”, lançado em 2016 e que reúne ensaios acerca da obra do cantor e compositor, comenta a trajetória dele na seara da literatura.

O Chico escritor, a seu ver, afasta-se muito do autor de canções ou não? Para falar do Chico escritor, creio ser importante lembrar, inicialmente, que ele existe bem antes do romancista. Ainda muito jovem, Chico já se ocupava da escrita ficcional: em 1966, aos 22 anos, viu seu conto “Ulisses” ser publicado no “Suplemento Literário” de “O Estado de S. Paulo” e reproduzido um ano mais tarde no songbook “A Banda”. “Sequestrado” pela canção popular, aos 21 anos, o compositor publicou em 1974, no entanto, a novela pecuária “Fazenda Modelo”, uma alegoria do Brasil sob a ditadura militar, e que foi imediatamente associada à obra de George Orwell “A Revolução dos Bichos”. Mas me detendo no romancista, acho importante não dissociá-lo, ou até mesmo não distanciá-lo, do compositor de cerca de 500 canções. É bem verdade que se trata de gêneros distintos, com temáticas e realizações diferentes, mas podemos fazer articulações entre as várias produções do autor. Por exemplo, em “Benjamim”, o protagonista mora num apartamento cujas janelas dão para a Pedra do Elefante, que nos faz lembrar o retratado na música “Morro Dois Irmãos”. E mais: há algum tempo Chico declarou que a ideia de escrever “Leite Derramado” surgiu quando escutou, na voz de Mônica Salmaso, “O Velho Francisco”, canção que ele havia composto em 1987 e na qual um velho escravo alforriado narra, também de forma desconectada, fatos de seu passado, fictícios ou não. Esse escravo que foi substituído no romance por um representante da elite brasileira. A obra nos remete, por sua vez, a uma canção composta anos mais tarde, “Barafunda” (2010), em que o eu lírico embaralha lembranças antigas, apresentadas com lacunas, como apontam os versos: “Gravei na memória/ Mas perdi a senha”. Além disso, tanto na escrita ficcional quanto nas letras e melodias, encontramos o mesmo cuidado e apuro técnico.

Em “Chico Buarque: Recortes e Passagens”, a senhora recorda como a formação dele se dá, primeiro, via literatura estrangeira, com a qual ele teve contato na biblioteca de seu pai. É possível identificarmos, entre os autores estrangeiros a que ele teve acesso, aqueles que escolheu aproximar-se mais? De fato, em diversos depoimentos, Chico lembra suas incursões à biblioteca do pai, realizadas ainda na adolescência. Inclusive, essa biblioteca acaba por se tornar uma personagem em “O Irmão Alemão”, dada sua importância no enredo do romance. O próprio Chico frisa que, bem cedo, começou a ler muito em francês, pois o que a biblioteca paterna mais tinha era literatura em língua francesa, e que ler foi uma maneira de se aproximar do pai, que lhe indicava autores como Flaubert, Camus e Sartre. Conta ainda que leu em francês Kafka, Dostoiévski, Tolstói, entre outros. Mais recentemente, em entrevista que me concedeu em 2015 e que consta de meu livro, ele cita autores que vinha lendo no momento: o poeta francês Ponge, o escritor suíço Walser, o austríaco Stifter e o chileno Bolaño. Mas, para além daquilo que o compositor e escritor declara serem seus interesses de leitura, ao analisarmos suas criações, encontramos diálogos com vários autores estrangeiros, como Homero, em jogos intertextuais cuja tônica é a reinvenção efetuada pelo autor brasileiro. Por exemplo, a canção “As Vitrines” (1981) faz ecoar o soneto “A uma Passante”, de Baudelaire. Com o mesmo Baudelaire, agora relativamente ao poema “Ao Leitor”, Chico dialoga na canção “Ode aos Ratos” (2001) em seus versos finais. “A Divina Comédia” e “Vida Nova”, de Dante, por sua vez, servem de inspiração para “Beatriz” (1982), em parceria com Edu Lobo. “O Estrangeiro”, de Camus, provoca versos da recente “Caravanas” (2017), e Shakespeare, em seu “Soneto XVI”, inspira a também recente “Tua Cantiga” (2017), entre outras.

Em relação aos escritores nacionais, com quais Chico manteve um diálogo mais estreito? Também em depoimentos diversos, Chico cita Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa – escritor pelo qual ele diz ter se apaixonado muito cedo – e Carlos Drummond de Andrade como autores que provocaram e ainda provocam seu interesse. Com Rosa, a partir de “Tutaméia: Terceiras Estórias”, ele dialoga em “Assentamento” (1997); com Drummond, relativamente aos poemas “Quadrilha” e “Poema das 7 Faces”, em “Flor da Idade” (1973) e “Até o Fim” (1978), respectivamente. Ainda que não citado pelo compositor, o célebre poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, é reinventado em “Sabiá” (1968), em parceria com Tom Jobim, e o também conhecido poema “Meus 8 Anos”, de Casimiro de Abreu, é recriado em “Doze Anos” (1977-1978), entre outros.

Em seu romance mais recente, “O Irmão Alemão”, Chico parte de uma questão biográfica para compor a ficção, embaralhando fatos reais e imaginários. Essa é uma tônica que atravessa também os outros títulos dele, em maior ou menor grau? No que se refere ao trabalho do compositor, alguns dados biográficos já aparecem, com mais ou menos nitidez, em certas canções: “Agora Falando Sério” (1969), “Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra Virar Casaca de Neném” (1969), “Acalanto para Helena” (1971), “Luisa” (1979), “As Minhas Meninas” (1986), “De Volta ao Samba” (1993), “Paratodos” (1993), “A Foto da Capa” (1993) etc. Quanto aos romances, em “Leite Derramado” ecoam proposições de Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”, como suas teses sobre o “homem cordial”. Aliás, é Chico quem afirma, em entrevista à jornalista portuguesa Isabel Coutinho, logo após o lançamento do livro, em 2009, que os estudos e o trabalho do pai “vazavam para a conversa do dia a dia”. E que ele acabou por citar no romance “coisas anedóticas” de que seu pai gostava muito, mas que não cabiam no tom de seus livros: “restos de histórias”, a “pequena história”. No meu estudo sobre o romance, procurei evidenciar precisamente que “restos” variados do pai acabam por se atualizar e se estetizar na obra do filho.

E em relação ao teatro? É possível dizer que ele volta-se para essa vertente concebendo textos e também canções com um olhar mais social? “Roda-Viva” (encenada no início de 1968), “Calabar” (escrita no final de 1974, proibida pela censura e só liberada seis anos depois), “Gota D’Água” (1975) e “Ópera do Malandro” (1978) trazem importantes questionamentos político-sociais referentes à realidade brasileira. Mas creio que a atenção dada pelo autor a essas questões não se restringe às peças, tampouco às canções que as integram e que acabaram ganhando vida própria para além do contexto original. Em vários de seus romances e em diversas outras composições, elas aparecem de forma encenada. Nesse sentido, continuo achando válida a afirmativa do jornalista Fernando de Barros e Silva em publicação de 2004: “De nenhum outro compositor ou escritor contemporâneo talvez se possa dizer que a história do Brasil, de 1964 até hoje, passa por dentro de sua obra”.

Atualmente a senhora vem dedicando-se a alguma nova pesquisa ligada à obra dele? Tendo iniciado minhas pesquisas sobre a obra do Chico em 2008 e já concluído três investigações (“A Extimidade em Chico Buarque: Uma Leitura a Partir de Budapeste”, “Chico Buarque: Uma Poética do Comum” e “Chico Buarque e Sérgio Buarque de Holanda: Interlocuções”), comecei no início deste ano uma nova pesquisa: “A Recepção de Chico Buarque na França: Trocas Culturais”, sempre com o apoio do CNPq. Nela, procuro evidenciar de que maneira a cultura francesa atravessa a obra de Chico e, principalmente, como essa obra vem sendo apreendida, sob vários aspectos, pelos franceses; no que se refere a “O Irmão Alemão”, também pelos alemães. O que já pude verificar é que o romance tem sido bem aceito nos dois países, com resenhas elogiosas nos principais jornais da França e da Alemanha. No primeiro país, o autor vem sendo reconhecido não apenas por este romance e pelos outros quatro. Esse reconhecimento se estende também às suas canções e às suas peças teatrais. Prova disso é o Prêmio Roger Caillois, na versão 2016, que lhe foi conferido pelo conjunto da obra, como representante da América Latina. Antes dele, nessa mesma categoria, receberam a premiação Vargas Llosa, Piglia, Bolaño, entre outros. Apenas um autor brasileiro, Haroldo de Campos, recebeu o prêmio antes de Chico Buarque. 

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