MOVIMENTO CULTURAL

Mais que uma dança, entenda o 'Passinho'

Expressão urbana promove rearranjo social e ganha destaque internacional

Por Vinícius Lacerda
Publicado em 03 de agosto de 2014 | 03:00
 
 
 
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Há mais de dez anos, o líder da Jacarezinho, uma das maiores favelas do no Rio de Janeiro, apreciava a presença dos gays nos bailes da comunidade. Dizia que eles alegravam a festa. Em um desses bailes, o traficante, e também exímio dançarino, começou a imitar os passos rápidos que os gays faziam com pé ao som do funk. Não demorou para que os garotos do local, fortemente influenciados pela imagem-modelo do líder do tráfico, começassem a imitar aqueles movimentos. Assim nasceu o Passinho. 

 

 
Entre algumas versões que se pode encontrar, essa é a de Rafael Nike, produtor musical e pesquisador de músicas urbanas há 20 anos, para explicar a gênese do dança na qual jovens da periferia carioca, em sua maioria, realizam coreografias num ritmo aceleradíssimo contorcendo todo o corpo, abaixando e subindo, enquanto as mãos são responsáveis por movimentos que se comunicam, seja com o oponente na batalha, seja com o público.
 
A verdade é que, assim como outros importantes gêneros atrelados à música, o Passinho não tem origem precisa. A única certeza é que a dança, considerada mais como uma variação do funk carioca, vem tomando contornos próprios e conquistando reconhecimento nacional e internacional, além de influenciar na formação, no dia a dia e até mesmo nos sonhos de adolescentes e jovens. 
 
Ao assumir tal escopo, torna-se também um movimento social. “Além da riqueza estética da antropofágica coreografia, que incorpora vários estilos de dança e arrebata mesmo quem não gosta de funk, o Passinho é o meio que a juventude se expressa e tenta vencer, com criatividade e alegria, a batalha da vida, na qual é, invariavelmente, estigmatizada por sua cor e classe social”, comenta o diretor da Batalha do Passinho e roteirista, Rafael Dragaud. 
 
E diversão não falta. A maioria dos praticantes fica por horas, em bailes ou na rua, dançando (ou ensaiando, aí os verbos viram, na maioria dos casos, sinônimos). Uma devoção que contribui para mudanças de comportamento. “Os jovens das favelas do Rio de Janeiro enxergam no Passinho uma possibilidade de se tornarem reconhecidos fazendo aquilo que gostam, e passam horas dançando em vez de usarem drogas. Nas escolas, as brigas que aconteciam no recreio e no final das aulas foram trocadas por batalhas. Dessa forma, o Passinho ressignificou a ideia de dançarino de funk”, relata Nike.
 
Ainda no que diz respeito à reestruturação social, o movimento é aberto, na verdade, à diversidade de gêneros sexuais. Nas palavras de Nike: “Não é questão de receptividade, os gays fazem parte do movimento”. Além de relatos dos entrevistados serem coerentes com a afirmativa, o que melhor expressa essa abertura é o clipe “Aperta o Play! (versão Bafo)”, no qual um dos integrantes do grupo Dream Team do Passinho protagoniza o clipe usando um vestido. “O mais legal é que a ideia partiu dele (do dançarino Rene) de fazer o vídeo. Ele não é gay, mas o público gay o adora e ele é conhecido por sua dança mais afeminada e não se envergonha disso. É um rebolão”, diz Nike, ao utilizar o nome para dançarinos que usam mais o quadril e trejeitos usualmente de gays afeminados. 
 
BOOM
Apesar da ininterrupção da prática depois de seu surgimento, foi em 2008 com a publicação do vídeo “Passinho Foda” que a proliferação teve início. O sucesso do vídeo estimulou outros dançarinos a fazerem o mesmo com o objetivo de se tornarem conhecidos. Paralelamente, surgia o termômetro que mede o sucesso dos artistas e grupos: a quantidade de views. 
 
A próxima reviravolta aconteceria em 2011, quando os duelos entre dançarinos de Passinho deixaram de ser realizados nas bailes funks e ganharam uma competição própria: o Baile do Passinho, cujo objetivo era o de eleger o melhor dançarino. “Dois moleques têm 45 segundos para mostrar sua performance. No final, são avaliados por três jurados, assim não há empate nunca”, explica Mike, idealizador do projeto. 
 
A segunda edição aconteceu em 2013 e tomou grandes proporções, chegando a levar 50 mil pessoas à semifinal e teve a final realizada no “Caldeirão do Huck”, da TV Globo. O sucesso instigou o interesse de grandes empresas, como a Coca-cola, e, para suprir essa demanda, foi criado o grupo de maior repercussão do movimento até agora, o Dream Team do Passinho. “Escolhemos dançarinos disciplinados e com talento para fazer parte do grupo com o objetivo de gravar o clipe ‘Aperta o Play’. Depois do lançamento do vídeo, nos assustamos ao receber mensagens da Croácia e do Japão”, comenta Mike, sobre o vídeo que acumula quase 6 milhões de visualizações. 
 
Os views geraram, porém, mais que sucesso dentro das comunidades entre pouco mais de 12 meses de existência do time. O grupo se formalizou, ensaia três vezes por semana, apresentou-se em grandes eventos, como Revéillon de Copacabana e no Carnaval em Salvador, e assinou um contrato com a Sony para gravar um CD. “Vai ser lançado no mês que vem”, adianta Nike. 
 
Para o cineasta Emilio Domingues, responsável pelo documentário “O Baile do Passinho”, o grupo tem aberto portas para que o mundo conheça o movimento. Porém, ressalta que há outros talentos despontando. “Eu estava em Nova York para exibição do meu filme e o grupo Na Batalha se apresentou no Lincoln Center Outdoor. Eu fiquei impressionado com a quantidade de pessoas interessadas em assistir ao espetáculo. Dá para ver a dedicação dos dançarinos e como, em geral, todos se empenham muito”, diz. “É mais que uma dança, estamos falando de um estilo de vida”, conclui.

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