Entrevista

Músico e ator, Wandi Doratiotto: “Somos um povo conservador e careta”

Integrante dos grupos Premeditando o Breque e Miolo Mole, ele está em “A Vida Secreta dos Casais

Por Raphael Vidigal
Publicado em 11 de agosto de 2019 | 03:00
 
 
 
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Numa entrevista ao “Provocações”, em 2005, Antônio Abujamra (1932-2015) assim o apresenta: “Apesar de músico com diploma de universitário, ele teve de ganhar a vida como apresentador e ator e não ficou rico”. A verdade é que Wandi Doratiotto, 66, já era o tal artista multimídia antes mesmo do termo ser inventado. 

Integrante dos grupos Premeditando o Breque, Milo Mole e Três É Bom, o homem que esteve à frente do programa “Bem Brasil” durante 17 anos segue inquieto. Ao Magazine, ele anuncia um livro de haicais e shows na Itália, e fala sobre a participação no seriado “A Vida Secreta dos Casais”, na HBO, entre outros assuntos.

O que significou para vocês o lançamento da “Caixa do Premê”, com todos os álbuns do grupo?

Essa parceria com o selo Sesc fecha um ciclo de quatro décadas do grupo. Foi um trabalho danado, de mais de 6 anos, em função da liberação das músicas em várias gravadoras pelas quais passamos. Para se ter uma ideia, um dos nossos álbuns foi produzido pelo Lulu Santos e teve participação do Caetano Veloso. Já imaginou a dificuldade para liberar nomes como esses junto às respectivas gravadoras? Por outro lado, gravar a nova versão de “Casa de Massagem” foi o máximo, porque repensamos o arranjo, para torná-lo mais fluido, e acho que ficou bom. Essa música foi vetada durante a ditadura, e quem ouvir agora vai notar o absurdo que era a existência da censura na nossa cultura. Incluímos uma citação ao golden shower e outra às enchentes que assolaram Sampa, por serem muito oportunas atualmente. 

No álbum “Como Vencer na Vida Fazendo Música Estranha”, chama atenção a música “Macho Ok”. Qual a história dela? 

Como sempre, procuramos fazer crônicas de costumes, a gente segue essa linha até hoje. Pelos tempos obscuros que atravessamos, ela serve como um sinal, em sentido contrário, ao ridículo que nos cerca. Nos shows que fazemos, percebemos que ela assusta um pouco, mas faz pensar. O álbum “Como Vencer na Vida Fazendo Música Estranha” veio a calhar, por conta dessa quantidade de livros de autoajuda que existem, e incluiu músicas que não podíamos tocar nos shows, em função da censura. Matamos os tais dois coelhos com uma cajadada só. 

De que maneira a censura e a ditadura militar interferiram na trajetória do Premê?

Como o Premê foi relativamente pouco executado nas rádios, os vetos da censura não atrapalharam muito, mas era desolador ter músicas até ingênuas, em alguns casos, vetadas pelo órgão. O Brasil parece liberal nos costumes, muito em função do Carnaval e das praias, mas é cosmético, somos um povo conservador e careta. Agora, fomos ao paroxismo com uma gente que está nos atrasando em um século, passando um trator em cima do esforço de tantos anos para sairmos das trevas. Vai passar, mas algumas coisas serão irreversíveis, como o desmatamento e questões com a sexualidade. Essa tática diversionista para tirar o foco dos problemas reais é muito perigosa.

Qual a principal contribuição do Premê para a música brasileira? 

Acho que ajudamos a tirar o peso da grande música popular brasileira, cheia de geniais compositores que a elevaram a uma altura respeitável. Arejamos um pouco o panorama. Mas é bom lembrar que a música brasileira, desde Noel Rosa, Sinhô e companhia, sempre teve muito humor. Não temos a pretensão de ditar nenhuma norma ou caminho. A música atual está repleta de ótimos criadores e instrumentistas. Vamos fazendo o nosso trabalho, procurando não ser lugar comum e caprichando nos arranjos e instrumentações. 

Qual a importância do humor na sua trajetória?

Venho de uma família muito musical e engraçada, aquela coisa de descendentes italianos, com um pé no interior. Admiro profundamente Adoniran Barbosa, que tinha os olhos e ouvidos voltados para a rua. Hoje, somente com humor dá para aguentar as bizarrices que nos cercam. É uma maneira muito eficiente de não enlouquecer e não ficar com o dedo em riste na cara de ninguém. 

O que significa criar uma música de vanguarda no Brasil? 

Como fizemos escola de música, tomamos contato com a vanguarda europeia e outros experimentos que rolavam no final dos anos 70, início dos 80. Tentamos colocar esses sinais na nossa estética, sempre atentos à história da nossa música brasileira como pano de fundo, sobretudo na criação de humor. Acho que os trabalhos com mais sinais claros do que chamamos de vanguarda estão na música do Arrigo Barnabé. Termos conquistado o segundo lugar do Festival da TV Cultura de 1979, onde Arrigo pegou o primeiro, foi muito emblemático. Deu um impulso e confiança grande para todos nós.

Qual a importância da Vanguarda Paulista para a música brasileira? 

A chamada Vanguarda Paulista foi muito útil pra gente relaxar e ganhar confiança. É muito difícil encarar uma profissão de músico popular num país que já tem Chico Buarque, Gilberto Gil, Noel Rosa, Assis Valente, Dorival Caymmi, Tom Jobim e etc. Com os experimentos da Vanguarda, conseguimos um caminho ligeiramente diferenciado e fomos em frente. É claro que a Tropicália e os Mutantes eram uma referência espetacular, mas conseguimos nos encaixar, à nossa maneira. Quanto ao canto falado, como diz o Luiz Tatit, do Grupo Rumo, ele pertence a um universo que já era explorado pelo cantor Mário Reis, de certa forma, e que o Tatit consolidou, com seu modo genial de falar sobre assuntos prosaicos. A (cantora) Ná Ozetti lacrou, interpretando lindamente aquelas músicas do Rumo. 

Os 70 anos de nascimento do Itamar Assumpção serão comemorados este ano. Como foi seu convívio com ele e o que ele representou para a nossa música? 

O Itamar era o cara que eu mais admirava naquela época, ele engrossou a contribuição da cultura negra no Brasil de forma lapidar. Sem a presença da etnia negra, nossa cultura seria muito frágil. Cito como exemplos Aleijadinho, Machado de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto, Cartola, Dona Ivone Lara, Nelson Cavaquinho, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Clementina de Jesus, Milton Nascimento, Pixinguinha, Donga, João da Baiana e mais uns cem que não caberiam aqui.

O que pensa sobre o momento político do Brasil? 

O avanço do conservadorismo é estarrecedor. Olhando tudo o que essa gente da nossa cultura que acabei de citar construiu, dá uma tristeza forte quando temos que conviver com pessoas insanas que não sabem o que estão fazendo e falando. Sem a arte, a divergência, o simbólico, o ser humano fenece. Disse um filósofo alemão, Friedrich Schiller, que o homem só é inteiro quando brinca, inventa, cria. Essa gente está brincando com fogo. O Brasil é um país complexo, como se chega a isso? Dá uma tese de 700 páginas. Falar assim, dá a impressão que não se admitem erros terríveis cometidos por governos anteriores. Não é isso, mas agora virou piada. Acho, por exemplo, que o Lula não deveria estar na cadeia. É um lugar terrível para qualquer ser humano. O que tem é que ser julgado com total isenção e, se cometeu erros, tem que pagar. Houve um açodamento claro na sua prisão. É só acompanhar o noticiário atual para perceber.

O que representou o programa “Bem Brasil” na sua trajetória?

Foi, junto com o Premê, a melhor coisa que fiz na vida. Foram quase 800 programas, onde o que importava não era a televisão, nem o apresentador, e sim a música. O artista convidado fazia a relação das músicas que iria tocar e pronto. Teve começo, meio e fim naturais. Acho que cumpriu uma função bacana de lançar muita gente e referendar os grandes. Já tá bom.

Na sua opinião, o que a realidade virtual trouxe de positivo e negativo? 

Não dá para ser contra o avanço tecnológico. As plataformas digitais são uma maravilha que ninguém mais pode prescindir. Gosto de fazer o feijão com arroz na internet, por incapacidade de ir mais longe. Como tudo que tem essa grandeza, há problemas reais no uso exagerado e naquilo que todos já sabem, as fake news. É uma questão de ajuste.

Quem foram as suas principais influências artísticas? 

Em termos musicais, minhas influências são todas aquelas de que me lembrei até agora. Quanto às letras, gosto de lançar alguns temas inusuais, como Dostoiévski e Nietzsche, e de fazer críticas de costumes. Você pode falar de qualquer assunto, é só conseguir uma boa síntese que dá certo.

Qual a sua mais remota lembrança musical? 

Quando eu era muito criança, por volta dos 5 anos, meu pai me levava para passear pelo bairro da Lapa, onde morávamos, no Rio, e eu via e ouvia muita gente tocando. Tinha orquestra, um cavaquinhista muito bom, o Lívio, que tocava os choros consagrados, um sanfoneiro, o Bento, que era um arraso! Minha mãe cantava, meu pai tocava cavaco e violão, meu avô tocava violino, dois dos meus tios tinham uma dupla, era um delírio! Depois, na adolescência, veio o impacto brutal dos festivais da TV Record, os Beatles, a Jovem Guarda. Tudo isso  foi me moldando para essa praia. Quando adulto, depois de assistir a muitas peças fantásticas, fui me interessando por teatro. Já no início dos anos 80, o (cineasta) Fernando Meirelles, que era fã do Premê e ia nos ver sempre, me convidou para fazer um comercial qualquer na produtora dele. Fui, ganhei confiança com a gentileza e competência do Fernando, surgiram os filmes da Brastemp, e não parei mais de me divertir como ator. Tá tudo junto e misturado, sou geminiano.

Como estão seus planos artísticos?

Venho trabalhando com o Premê, com o Miolo Mole, trio que tenho com o Swami Jr. e o Danilo Moraes, e com o Três é Bom, uma brincadeira musical que faço com o Paulo Freire e o Mauricio Pereira. Temos shows marcados por aí. Vou lançar um novo livro de haicais, estou na segunda temporada do seriado “A Vida Secreta dos Casais”, com Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli, na HBO. Já gravei três filmes em 2019 e no ano que vem vou fazer uns showzinhos na Itália, só com cavaquinho e violão. 

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