Cinema

Não existe amor na Rússia

Vencedor do Prêmio do Júri em Cannes e candidato ao Oscar de filme estrangeiro, “Sem Amor estreia nesta quinta-feira (8)

Por Daniel Oliveira
Publicado em 08 de fevereiro de 2018 | 03:00
 
 
 
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“Sem Amor” começa com planos de uma natureza seca e morta, árvores nuas e retorcidas em meio ao desolador inverno russo. As imagens são diferentes, na paleta e nas locações, daquelas que Andrey Zvyagintsev usou em “Leviatã”, seu longa anterior, mas cumprem o mesmo papel: no cinema do diretor, a geografia é uma paisagem da esterilidade moral e emocional dos personagens e da Rússia atual.

No caso do filme que estreia nesta quinta-feira (8), eles vêm a ser Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin), casal no meio de um divórcio nada amigável. Em sua primeira cena juntos, os dois discutem sobre a guarda do filho de 12 anos, Alyosha (Matvey Novikov). Boris acha que o garoto deve ficar com a mãe; ela quer mandá-lo para um internato. O menino escuta tudo, escondido, e, no dia seguinte, desaparece sem deixar rastros.

Zhenya e Boris não são bons pais, isso é fato. Zvyagintsev permanece com o casal na noite em que Alyosha não volta para casa – e enquanto o pai faz compras com a nova namorada, Masha (Marina Vasileva), já grávida, e depois transa com ela, a mãe também sai para um jantar romântico com o novo namorado, Anton (Andris Keiss), que termina igualmente em sexo.

O diretor faz questão de mostrar como seus dois protagonistas são pessoas sexuais, mas essencialmente estéreis – secas por dentro. E se pergunta (e ao espectador), com o filme, se o sumiço do filho é uma chance para os dois se provarem um pouco mais humanos, ou simplesmente se insultarem e torturarem ainda mais.

Mesmo quando os pais se dão conta do desaparecimento do filho, o público questiona se eles estão mais preocupados com Alyosha ou com a maneira como isso interfere em seus planos – e a certa altura, começa quase a torcer para que o garoto tenha fugido para um lugar ensolarado e feliz, e não seja encontrado e forçado a voltar para aquelas pessoas horríveis. Zhenya só se refere ao filho como o pior erro de sua vida; Boris só pensa em como isso será percebido na firma onde trabalha, de propriedade de cristãos ortodoxos, extremamente rígidos e avessos ao divórcio.

E essa dimensão social é o centro de “Sem Amor”. Porque Zvyagintsev está bem menos interessado no drama burguês desses personagens profundamente desagradáveis do que em usá-lo para fazer um retrato brutal e cáustico de seu país hoje. Os dois pais relapsos e egocêntricos do filme são a imagem perfeita de um Estado corrupto e imoral, mais preocupado com estratégias de manutenção dos próprios privilégios e do poder do que com o bem-estar de seu povo – algo válido para a Rússia, mas insira aqui o país de sua preferência. E é por disfarçar suas críticas com tramas policiais e burguesas que Zvyagintsev consegue fazê-las em um dos países mais conservadores e avessos à liberdade de expressão no mundo atual.

O que não quer dizer que o longa não deixe esse subtexto bem claro. Uma das cenas mais brutais de “Sem Amor” é quando o detetive informa a Zhenya que a polícia não tem pessoal suficiente para se ocupar com “um adolescente fujão” – e só vai começar uma busca caso ele não volte em até dez dias. Não por acaso, a única cor mais quente na paleta monocromática e fria do filme é a do colete laranja dos voluntários do esquadrão de busca – com o cineasta reconhecendo que, se algo de bom surgiu do desolador cenário político contemporâneo, é a organização civil em resposta ao descaso e à burocracia estatal.

E para quem ainda não tiver entendido, Zvyagintsev insere uma sequência – nada sutil e destoante da sobriedade prudente de seu cinema – em que, para ignorar o noticiário na TV sobre as atrocidades de seu país na Ucrânia, uma personagem vai correr do lado de fora de sua casa usando um agasalho escrito “Rússia”. É quase uma quebra da quarta parede, em que o cineasta parece gritar “alguém se importa com tudo que está acontecendo?”, mas que, em certa medida, renega ao público o direito de tirar suas próprias conclusões.

Política à parte, “Sem Amor” funciona com seu elenco competente e sua recusa a sentimentalidades e redenções fáceis. Assim como o restante da filmografia de seu diretor, não se trata de um filme agradável ou fácil, mas é um soco na boca do estômago desferido por um boxeador no auge da forma – implacável e frio, como o inverno russo. Em uma das cenas, uma personagem diz “vamos tomar chá? Mas não tem nada doce. Só o mel, e ele ficou duro”. Essa é a definição perfeita do convite que Zvyagintsev faz ao espectador.

FOTO: Sony/Divulgação
Alyosha, Matvey Novikov
Alyosha (Matvey Novikov) é figura-chave para o drama do filme

 

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