Entrevista

O trabalho de ser Villamarim

Diretor mineiro José Luiz Villamarim fala sobre seu sucesso na Globo e o lançamento do primeiro longa, “Redemoinho

Por Daniel Oliveira
Publicado em 23 de janeiro de 2017 | 06:30
 
 
 
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Poucas pessoas tiveram um 2016 melhor que José Luiz Villamarim. Além de comemorar o sucesso das minisséries “Justiça” e “Nada Será Como Antes” na rede Globo, o diretor mineiro lançou seu primeiro longa-metragem, “Redemoinho”, que venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival do Rio e chega às salas no próximo dia 9 de fevereiro. Na entrevista a seguir, ele conta como esse sucesso é o resultado de 24 anos de muito trabalho, fala sobre o estado atual da teledramaturgia brasileira e revela como foi retornar a Minas para realizar o sonho de fazer cinema.

MAGAZINE: De onde veio a vontade de trabalhar com audiovisual?

Villamarim: Nasci em Três Marias, vivi 22 anos em Belo Horizonte e me formei em Economia na PUC em 1986, quando o cinema brasileiro tinha praticamente parado. Em Minas, era pior ainda. Mas BH tinha o cine Humberto Mauro e o Pathé e, como frequentador, eu tinha um desejo de fazer cinema. Não tinha como na época, mas houve um boom de videomakers, como o Éder Santos e o Lucas Bambozzi. E tentei um pouco esse caminho, enquanto trabalhava como economista. Mas nem posso dizer que fui videoartista. O que me impulsionou foi uma tentativa de ficção em que dirigi atores: um vídeo de treinamento para a Polícia de Minas Gerais.

M: E como isso te levou até a Globo?

V: Eu era amigo da empresária do Bituca (Milton Nascimento). Ela conhecia o Dennis Carvalho, ele viu o vídeo, e acabei entrando em “Anos Rebeldes”. Foi quando vim para o Rio, ainda com o desejo de fazer cinema. Mas quando eu entro na Globo e vejo o tamanho dessa máquina, minha carreira foi embora. Assinei contrato e fui assistente de direção 1, 2 e 3, diretor, diretor-geral, diretor de núcleo...

M: E o que você aprendeu nesses 24 anos ali dentro?

V: Na época que eu formei, não tinha nenhuma escola de cinema no Brasil, exceto na UFF. Só cursos de comunicação. Não tinha muito jeito de estudar, não tinha bibliografia. Aprendi vendo, discutindo em bares, como bom mineiro. Eu aprendi aquilo na prática. TV tem a coisa enorme do cotidiano. É uma indústria, como o cinema brasileiro está começando a se tornar. E no processo industrial, você vai inteligentemente se aliar a algumas pessoas que vão te auxiliar no seu trabalho, te influenciar – tanto diretores quanto atores quanto autores. O Dennis é um cara de quem aprendi muito, o (Walter) Avancini também. Agora, cabe muito a você realizar, estudar, aprofundar. Acho que ajudou muito eu ter uma formação. Em Minas, existe uma tradição da literatura, das artes plásticas, do diálogo, e eu li muito, vi muitos filmes. Eu acho que um diretor tem que entender de tudo: de artes plásticas, arquitetura, teatro, cinema, psicanálise, para se aprofundar no seu ofício. Você aprende também na maneira como leva a vida, no que você observa. É difícil sintetizar. Adoro a frase “quando a sorte me encontrou, eu estava trabalhando”. É o que eu faço: eu trabalho, não paro.

M:Teve algum trabalho especial, ou que você considera ter aprendido mais?

V: “O Rei do Gado” marcou. Porque o Benedito (Ruy Barbosa) é um autor que demanda muito da direção. Historicamente, todo mundo que dirigiu obra dele se destacou. Ele escreve todo capítulo em cima da emoção, com começo, meio e fim dentro da própria cena – em busca de um ritmo, não só da repetição, e isso favorece a direção. Mas TV é aquela coisa: existe um excesso de coisas para fazer e, às vezes, você tem que se frustrar com a qualidade, enquanto vai brigando pelo seu espaço, por um tempo maior de realização, por algo mais artesanal. Você tem que lutar contra o processo industrial, no sentido de trazer o artesanal para dentro dele, fazer alguma diferença. Porque a dramaturgia e a TV do século XXI são outras.

M: Qual foi a cena mais difícil e a que você mais gosta no filme?

V: Difícil foi começar. Saber se fez as melhores escolhas, ter certeza. A cena que mais ensaiei é a primeira vez que eles entram todos na casa porque é um plano enorme, de seis, sete minutos. Fiz, revisei, fiz de novo. Fui na ilha assistir. É um processo: a vida é um processo, o cinema é um processo. E uma cena que acho linda é a imagem da memória deles: os meninos na ponte, desfocados. Você só sente o que acontece. Foi muito feliz: uma imagem que eu vinha pensando, a chuva caiu, Waltinho e eu botamos a tele, tiramos umas fotos, chegamos naquele quadro. Sempre que vejo no filme, me emociono muito. É uma síntese.

M: Você foi um dos diretores de “Avenida Brasil”, última novela das 21h de sucesso. Qual é a solução para reverter a queda de audiência que o horário vem sofrendo desde então?

V: A novela das 21h é um dos formadores culturais do Brasil, para o bem e para o mal, e era um hábito. O último hábito de sentar em frente à TV, o último bastião, e ele foi perdido. Não tem mais. Se a novela não bater, as pessoas trocam de canal e não veem mais. O sucesso hoje depende do projeto, e não do horário. Você pode ter uma grade bem montada para ajudar, mas ainda assim, a audiência troca de canal hoje minuto a minuto. É assustador. O que eu acho é boas histórias bem narradas sempre vão dar ibope. A diferença é que não tem mais hábito. “Amores Roubados” deu um ibope que ninguém imaginava. “Justiça” bateu recorde. Eram boas histórias. Por azar, as novelas das 21h não têm dado certo. Mas espero que deem.

M: Você trabalha muito. Tem tempo de ver TV? Acompanha alguma série?

V: Assisto pouca TV. Trabalho 14h por dia, com prazer. Então, não sou um sériemaníaco. Mas vi “Família Soprano”, “Breaking Bad”. Comecei “The Crown” e “Black Mirror”. E vou muito ao cinema. Para mim, os filmes estão sempre na ponta da vanguarda, apontando o caminho. Claro que existe a Era de Ouro da TV, com um avanço dos roteiros, dos plots, e a televisão passa a ser uma figura desejada para o realizador. O Woody Allen vai fazer, os Coen fecharam, Scorsese, David Lynch. Mas o cinema continua apontando caminhos, com nomes como Miguel Gomes e Lucrecia Martel. O audiovisual não para.

M: E a TV brasileira está acompanhando essa Era de Ouro?

V: A dramaturgia mudou, mas a base continua lá. O folhetim, as histórias são as mesmas, só que a maneira de narrar, o dinheiro envolvido, o olhar das pessoas são outros – e as séries têm muito essa função. A TV brasileira precisa seguir esse caminho, arriscar. “Justiça” é um exemplo recente. O cara mata a filha da mulher, e eles acabam ficando juntos. Um plot desse é difícil de vender. A Globo bancou e deu ibope. É um mistério, não sei o que dá certo. 100 milhões de pessoas passam pelo canal todo dia – o tamanho do público que a gente tem que agradar é muito grande e complexo. É assustador e genial.

“Minas crua, seca, maçante”

M: Por que lanças o primeiro longa agora?

V: Eu trabalhava demais, não tinha muitos contatos no cinema, nem um projeto que me encantasse. Mas depois que fizemos “O Rei do Gado”, o Luiz (Fernando Carvalho) foi fazer “Lavoura Arcaica”. Eu acompanhei paralelamente e vi que era possível fazer cinema, que estava chegando a hora. E tinha uma parceira antiga da época da videoarte, a Vânia Catani, que montou a produtora Bananeira Filmes e vivia me falando “vamos fazer um longa”. E 12 anos atrás, achei esse livro do (Luiz) Ruffato que, ironicamente, era sobre voltar ao lugar de origem, e me identifiquei com a história. Me deu vontade de levar às telas. Passei para o George (Moura), e virou o “Redemoinho”.

M: Foi uma escolha consciente retornar às raízes mineiras nesse projeto?

V: É um plot sobre, entre quem parte e quem fica, quem fez a melhor escolha. De certa maneira, eu saí. E acabei escolhendo parceiros para o filme que também fizeram esse movimento: a Vania saiu de Montes Claros, o George e o Walter (Lima Jr., diretor de fotografia) saíram de Recife. Até os atores que escalei: a Dira (Paes) vem do Pará, o Irandhir (Santos) do Recife, o Julio (Andrade) do Sul. Isso é um plot universal: achar que vai resolver alguma coisa na vida partindo. Quando li o livro, vi personagens de um jeito que não haviam sido retratados ainda, tanto na literatura quanto no audiovisual nacional. Pessoas acima da linha da pobreza, com condições mínimas, uma formação, mas que não atingiram uma qualidade de vida melhor. Eles representam milhares de brasileiros, trazem o extraplano invisível para o primeiro plano. O filme permite ao porteiro, ao motorista, ter essa crise existencial que o Ruffato chama de inferno provisório. A literatura dele me encantou e quis transformá-la em imagens no cinema.

M: O longa foi filmado em Cataguazes e traz um sotaque e um retrato muito autêntico do interior mineiro. Como foi trazer isso à tona na tela?

V: Eu não conhecia Cataguazes, mas conhecia esse universo. E o Ruffato conhecia a cidade profundamente, tanto que escreveu sem aquela beleza mítica da literatura, das montanhas do interior do Estado. É uma Minas crua, seca, massante. E essa Minas profunda me interessava muito. O processo foi trazer o elenco e a equipe para esse lugar. Fiz toda uma preparação com eles no Rio e passamos 20 dias em Cataguazes antes das filmagens, ensaiando e vivendo a cidade. Queria que ela deprimisse um pouco o elenco, tirasse a alegria do Irandhir porque ele é muito feliz (risos). Foi um processo de imersão profunda. O Ruffato nos ajudou a conhecer personagens ali. E eu sou mineiro, a continuísta era mineira, então ficamos de olho no sotaque, na prosódia. É uma música. O filme tem uma rigidez nos planos, demora a se aproximar dos personagens, muitas cenas em planos únicos.

M: Qual foi a maior diferença para seu trabalho na TV?

V: No cinema, você tem mais tempo. Muito mais. Tanto no roteiro quanto para filmar, montar. Tempo é uma coisa rara hoje. E ao ter tempo, eu coloco isso dentro do filme. Começo distante porque queria que as pessoas fossem entrando devagar. O perigo é que dá tempo de desistir, mas se embarcar, a coisa funciona. Hoje é chique falar mal do Bergman. Um saco é quem não viu Bergman. O mundo hoje está muito agoniado, e eu botei essa agonia dentro do filme. Fiz questão de trabalhar sempre no tripé, à altura do olho, exatamente para nunca cansar, sem malabarismo, sem maneirismos. Venho tentando fazer isso há um tempo: desaparecer. Fazer com o que o espectador não sinta nenhum recurso, nenhum apelo. Tenho trabalhado muito com câmera solta, à la (John) Cassavetes, na TV e, com o Waltinho na fotografia, quis fazer uma mise-en- scène diferente. Mudar meu jeito de filmar, trabalhar na negação, me tirar do lugar que me é mais tranquilo. Tirei até as músicas do filme. Quando ouvi a fábrica e o trem fazendo todo aquele barulho, falei “não precisa de música, aqui está o inferno provisório”.

M: Como é seu set? Qual é sua regra fundamental?

V: Concentração. Todo mundo voltado para o que está sendo realizado. Meu set não é neurótico, pelo contrário. É um set que busca catarse. Porque trabalho muito com um plano só. Busco resgatar aquele ritual de onde se põe a câmera para contar a história. Voltar às questões ritualísticas favorece a concentração e a catarse. Se todo mundo está fazendo, ninguém pode errar: o contrarregra não pode, o ator não, o cara da luz não. Tem um grau de concentração de 60, 70, 80 pessoas que o Tarkovski dizia que “o sangue que corre é o mesmo, pulsa e vai para a tela”.

M: Qual foi a cena mais difícil e a que você mais gosta no filme?

V: Difícil foi começar. Saber se fez as melhores escolhas, ter certeza. A cena que mais ensaiei é a primeira vez que eles entram todos na casa porque é um plano enorme, de seis, sete minutos. Fiz, revisei, fiz de novo. Fui na ilha assistir. É um processo: a vida é um processo, o cinema é um processo. E uma cena que acho linda é a imagem da memória deles: os meninos na ponte, desfocados. Você só sente o que acontece. Foi muito feliz: uma imagem que eu vinha pensando, a chuva caiu, Waltinho e eu botamos a tele, tiramos umas fotos, chegamos naquele quadro. Sempre que vejo no filme, me emociono muito. É uma síntese.

M: E quais são suas influências, diretores e filmes favoritos?

V: Adoro Kubrick. Gosto da trajetória dele, acho “O Iluminado” antológico. Gosto muito de Antonioni, “Blow-up” e “Profissão Repórter”. Kurosawa. Visconti. Bergman. Glauber. Joaquim Pedro de Andrade. “O Padre e a Moça” é um filme lindo. Para o “Redemoinho”, vi muitos filmes em ambientes fechados. “Amor” e “Violência Gratuita”, do Michael Haneke. “Amor à Flor da Pele”, do Wong Kar-wai. Ele usa muitas paralelas e quadros apertados que usei como referência na fotografia. Vi Jia Zhangke. Pedro Costa. “Era uma Vez na Anatólia”, do Nuri Bilge Ceylan. No Brasil, adoro o cinema pernambucano: o Gabriel Mascaro, “Boi Neon”, o Kleber (Mendonça Filho), óbvio, “Aquarius”. Gosto muito de “O Céu de Suely”, do Karim Aïnouz. Vi o “Cinema Novo”, do Eryk Rocha, que é um filme necessário, o que é dito, pensado nele, ver como nada muda no Brasil, o país mais atávico do mundo.

M: Quais são seus próximos projetos?

V: Vou fazer uma “super série”, como a Globo está chamando agora, “Onde Nascem os Fortes”. Estou levantando orçamento de mais dois filmes. E acho que vou fazer uma novela das 21h.

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