Mostra de São Paulo

O último tango de um senhor 

Vencedor dos prêmios de melhor direção, ator e atriz em Gramado, “A Despedida faz retrato realista do tempo na velhice

Por daniel oliveira
Publicado em 24 de outubro de 2014 | 04:00
 
 
 
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São Paulo. O principal desafio ao entrar na sessão de “A Despedida” é superar o “choque”. Num mundo em que ficamos impacientes quando o celular demora mais que alguns segundos para mandar uma mensagem, o filme do diretor Marcelo Galvão ousa ser o retrato angustiante de uma ampulheta em câmera lenta. Acompanhar um dia na vida de um homem que leva quase cinco minutos para sair da cama, mais dez para chegar ao banheiro, uma eternidade para se vestir.

“Queria fazer um road movie a 10 km/h, com planos longos que incomodassem”, confirmou o cineasta, após a sessão do longa na Mostra de São Paulo. O homem em questão é o Almirante (Nelson Xavier) que, no crepúsculo de seus 90 anos, acorda um dia determinado a se despedir da amante Morena (Juliana Paes). Nessa jornada, cada passo é uma vitória, cada brisa mais forte é um risco, cada minuto é um a menos na corrida contra o tempo. “Brinco que o filme tem três personagens: o Almirante, a Morena e o tempo”, ri Galvão.

Não é só na montagem que “A Despedida” tenta inserir o espectador nesse universo, ao mesmo tempo fascinante e incômodo, da velhice. A fotografia lavada de Eduardo Makino retrata o tom sépia e sem viço dessa fase da vida, e a mixagem de som de Marcelo Cyro deixa o público nos 20 minutos iniciais escutando o mundo pelos ouvidos sem aparelho de audição do protagonista. “Queria que o espectador enxergasse o mundo pelos olhos do Almirante”, explica o diretor, que inspirou o personagem em seu avô.

E para tornar esse mergulho angustiante e sufocante em algo mais palatável, Galvão tem a sorte de contar com o monstro Nelson Xavier. O ator de 73 anos, que envelhece 20 no andar e nos movimentos tolhidos pelo Parkinson do Almirante, carrega a maior parte do longa quase sozinho em cena, com uma daquelas performances que beiram o sobre-humano.

O longa só ganha alguma cor e calor com a entrada de Juliana Paes, naquele que é de longe o melhor trabalho de sua carreira. Sem maquiagem, contida e com o corpo de quem havia acabado de dar à luz, a atriz constrói a intimidade e a cumplicidade de um relacionamento cuja história nunca é explicitada pelo roteiro. “Fiquei um bom tempo dançando com o Nelson para criar o toque dos dois. Quando o olho no olho ficou confortável, a gente foi rodar”, Paes descreveu, sobre o tango orgânico resultante da química dos dois atores em cena.

Mas o maior mérito de sua performance é encontrar nuances de sinceridade e dignidade no olhar melancólico de Morena, que fazem com que sua ternura incondicional não soe afetada ou enjoativa. “Eu descobri isso quando entendi que a jovialidade e a luz na vida dela vêm todas do Almirante. É a história de uma jovem velha e de um velho jovem”, sintetiza.

Não é por acaso que Paes e Xavier venceram os prêmios de melhor atriz e ator em Gramado, assim como Galvão e sua direção. Apesar de escorregar feio quando decide mostrar o Almirante jovem em dois momentos marcados por uma trilha melodramática que trai toda a proposta realista da abordagem até ali, “A Despedida” é o melhor trabalho do diretor de “Quarta B” e “Colegas”. Uma história simples, bonita e bem-contada – não recomendada para quem não consegue passar mais de dez minutos com seus avós.

O repórter viajou a convite da Mostra de São Paulo

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