Entrevista

Ocupando o lugar do desapego

“As pessoas têm uma visão de que, ou você é um produtor nos moldes de Hollywood, ou está só a reboque do diretor

Por Daniel Oliveira
Publicado em 30 de abril de 2017 | 03:00
 
 
 
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Luana Melgaço, produtora de cinema

Prestes a completar 38 anos, Luana é uma das responsáveis pelo atual boom criativo do cinema mineiro. Produtora de filmes como “A Cidade Onde Envelheço” e “A Falta que Me Faz”, ela está envolvida em quase dez novos projetos. Ao Magazine, ela fala da invisibilidade do papel de produtor, de sua participação criativa nos filmes, dos desafios de ser uma mulher no set e dos problemas do incentivo ao setor no Estado.


Você acha que o produtor é uma figura injustiçada no resultado de um filme?

Não acho que seja injustiçado, é uma palavra forte. Acho que, às vezes, ele passa por uma invisibilidade. As pessoas têm uma visão de que, ou você é um produtor nos moldes de Hollywood, que é quem tem as ideias, propõe os filmes e é dono da coisa toda; ou está só a reboque do diretor. Só que, entre esses dois lugares, há uma gama de possibilidades. Eu sou uma produtora que não proponho projetos. As ideias não partem de mim, sempre vêm do diretor. Mas eu entro num filme desde o início. Estou próxima de todas as decisões que acontecem durante cinco dez anos – que é o tempo que se trabalha num longa no Brasil. Entendo que o diretor responde pela parte criativa e deixo esse mérito sempre com ele. Mas para que isso se viabilize, tem que ter alguém ali discutindo e planejando com ele. Não que eu seja uma produtora do diretor. Que estou ali para satisfazê-lo e dar vazão a um grande artista, cuidando da vida pessoal e da agenda dele. É muito mais que isso. Além disso, em Minas, temos poucos produtores e muitos diretores. Então, um produtor só dá conta de muitos projetos diferentes. É algo pouco percebido, invisível, porque quando o filme é lançado, quem vai responder pelo sucesso criativo é sempre o diretor.

Por que você escolheu ser produtora?

Entrei na faculdade querendo ser publicitária, mas nunca me adequei muito à turma, não encontrei motivação ali. Minha afinidade maior foi com quem queria fazer Rádio/TV, como o Leo Barcellos e a Clarissa (Campolina), que eram meus colegas. Fui para essa turma, ainda sem saber o que queria fazer. E durante a faculdade, fui percebendo que todas as decisões práticas me envolviam muito mais. Havia sempre uma disputa pelo lugar do diretor, mas eu nunca queria entrar nela. E uma vez o (Rodrigo) Minelli, meu professor, me perguntou se eu pensava em ser produtora. Eu nem sabia que esse lugar existia. Não conhecia com esse nome, mas era o que eu fazia. Ele citou a Vania Catani, que estava despontando como produtora na época e era daqui. Fui para a TV, trabalhei um pouco com jornalismo, programas de entrevista. E quando fui convidada para fazer um filme, fui para produção, ainda como assistente, e encontrei meu lugar. Não tinha a participação que tenho hoje, os filmes não eram “meus”, lidava com coisas imediatas. Hoje, o trabalho que faço é um planejamento bem mais a longo prazo, de pensar junto com o diretor.

E você já sentiu vontade de dirigir?

Não. E acho muito pouco provável que venha a sentir. Em 12 anos de profissão, ela nunca veio. Mas venho tentando me expressar artisticamente de outros jeitos, tenho desenhado – por estímulo da minha terapeuta. Mas dirigir ainda não. Consigo contribuir artisticamente no lugar que estou, e isso me deixa feliz.

Você tem uma personalidade mais logística ou mais criativa?

Mais logística. Planejamento tem mais a ver comigo. O que eu quero, na parceria com um diretor, é escutá-lo, com suas questões, angústias, vontades e desejos, e ajudá-lo a pensar como concretizar isso. De alguma forma, você tem que trazer ideias criativas, mas como produtora, estou num lugar do desapego. Porque aquilo não está partindo de mim. No cinema que trabalho, autoral, o filme é sempre algo que mexe com o diretor e o impulsiona a transformar isso em cinema. Eu não tenho esse apego. E consigo trazer alternativas e propostas de um lugar menos subjetivo. Ajudo criativamente, gosto muito de pensar o filme junto, nos nomes da equipe, quem trabalha com quem. Mas o que mais me agrada mesmo é o planejamento a longo prazo, como financiar. E com diretores diferentes, contribuo diferentemente. Já teve processos de montagem em que não me senti à vontade para opinar, então deixo a pessoa trabalhar livremente. Em outros, me sinto mais confortável para ser esse interlocutor. Não tem um lugar tão definido, cada filme é um processo que demanda uma atuação diferente.

E qual foi o filme mais difícil que você já produziu?

Acho todos difíceis. Não tem filme fácil. E é sempre bom achar que vai ser difícil porque, quando você pensa que não, dá errado: é mais complicado, você tem mais imprevistos. O “A Cidade (Onde Envelheço)” foi bem complexo. Porque a gente tinha que trabalhar dentro da cidade, com tudo que ela te coloca de dificuldades, stress, uma equipe muito reduzida. Recursos reduzidos. Foi um filme difícil, mas valeu.

Como produtora, você já sentiu algum tipo de preconceito ou diferença de tratamento por ser mulher?

Sim, com certeza. Desde que comecei como assistente, e hoje consigo enxergar isso com muito mais clareza por estarmos nesse momento de feminismo em pauta, lembro que era uma dificuldade conversar, lidar – especialmente com as equipes técnicas, que têm poucas mulheres. Tem muito aquelas brincadeiras, tentar passar a perna nas meninas. Hoje ainda sinto, por mais que trabalhe com equipes queridas e próximas, que muitas vezes tenho que justificar muito mais minhas escolhas. Nós somos muito mais questionadas, comparando com meus colegas produtores que não têm tanto isso na experiência deles. E tem ainda o problema da produtora ser confundida com mãe. Isso é o que mais me incomoda. Não quero ser mãe, nem ter que cuidar das pessoas o tempo todo. Embora goste muito de ser uma produtora cuidadosa, queria ter que cuidar menos da vida de uma equipe grande quando estou produzindo. Parece ser papel do produtor cuidar da vida das pessoas e, sendo mulher, isso é um pouco mais exacerbado, mais forte. Hoje faço parte de grupos de estudos feministas e acho que a gente tem que transformar nossos ambientes de trabalho. Não sou mãe, sou colega e divido responsabilidades e vontades.

É mais difícil produzir em Minas que em outros Estados?

Nesse momento, a gente tem menos recursos financeiros, apesar de alguns programas de regionalização do Fundo Setorial do Audiovisual. Mas ainda é muito pouco. O incentivo no Estado é ralo e inconsistente. Nunca foi muito, e hoje está mais enfraquecido. Existe uma promessa de fortalecimento, que ainda não se concretizou. Mas já trabalhei no Ceará e encontrei uma realidade bastante parecida com a nossa. E tem uma coisa de profissional: a gente ainda traz muita gente de fora. Porque a regularidade de produção determina a regularidade do profissional. Como não temos produção regular, ainda faltam profissionais.

E por que a classe faz tanta questão do Filme em Minas, e não do Prodam?

O Prodam ainda não mostrou a sua intenção. Não consigo ver ele se efetivando como um programa mineiro. É só uma conversa, que ainda dá muita volta. Não tenho apego ao Filme em Minas como um nome. Pode mudar o nome, de onde vem o recurso. Mas que seja um recurso que abarque toda a cadeia. Pelo Prodam, está havendo um investimento massa em desenvolvimento de projetos. Mas queremos investimento em curta, que está faltando. Em médias, festivais, formatos livres. A gente quer que toda a cadeia seja beneficiada. E tem um problema que acho grave, que é não voltar ao Filme em Minas para ver o que era bom. As pessoas envolvidas naquele edital foram adquirindo um know-how de como fazer ele acontecer. Esse da Codemig é muito frágil. O Filme em Minas era muito menos atropelado. O que me incomoda é ter se desfeito dessa experiência. Como você joga ela fora e começa tudo de novo, do zero? Eu realmente quero ver o Prodam se concretizar, entender o perfil desses editais e que eles tenham um diálogo amplo de fato.

Quais são os cineastas e artistas que você admira?

Como produtora, cito a Sara Silveira, que foi uma grande professora. Produzimos o “Girimunho” juntas, e ela foi uma colega. Foi meu primeiro filme como produtora de fato, e ela foi muito generosa com uma jovem que estava começando, me tratando como uma produtora majoritária do filme. Foi uma experiência em que aprendi muito.

Quais são seus próximos projetos?

Estamos montando o “Coiote” (do diretor Sérgio Borges), esperando que ele saia no segundo semestre ou no primeiro de 2018. A Anavilhana ganhou um edital de Núcleos Criativos, e estamos desenvolvendo seis projetos com pessoas que adoro e admiro, como o Cao Guimarães, o Ricardo Alves Jr., a Aline Portugal, uma série da Marília (Rocha), um longa da Clarissa (Campolina), “Canção ao Longe”. Tem também um filme do Marcus Pimentel, “Saudades”, que a gente roda ainda este ano, nosso nono projeto juntos. Estou trabalhando em um filme com a Joana Oliveira, “Kevin”, que vamos filmar uma parte na Uganda – muitas diretoras, o que é bom. E com o Serginho (Borges) tem ainda outro projeto que estamos desenvolvendo, mas está um pouco atrasado por causa do “Coiote”.

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