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Pelas ondas do rádio

Professor universitário e radialista Fábio Martins conta algumas experiências vividas ao longo de décadas de trabalho contínuo no veículo

Por DOUGLAS RESENDE
Publicado em 20 de outubro de 2007 | 16:17
 
 
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F ábio Martins tem uma longa história dedicada ao rádio. Foi repórter de política da Itatiaia, quando entrevistou o general Carlos Luis Guedes na noite anterior ao golpe militar de 1964 e anunciou em primeira mão o fato que iria fazer o país entrar no "grande túnel escuro", como diz o hoje professor de radiojornalismo na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG. Após décadas de reportagens na Itatiaia e Iconfidência, Fábio dedica-se hoje a atividades acadêmicas - além de lecionar, é editor da "Rádio Revista", publicação da Fafich, e autor do livro "Senhores Ouvintes, o Rádio e a Cidade" (Editora C/Arte) - e um projeto educacional em escola da periferia. Em setembro, Fábio coordenou o seminário "Rádio em Revista - O Rádio Revisitado", realizado na Fafich no mês em que se comemorou os 85 anos da primeira transmissão de rádio em terras brasileiras, que aconteceu em 7 de setembro de 1922, quando se comemorava o centenário da independência do Brasil.

A história do relacionamento de Fábio com o rádio perpassa momentos importantes da história política do Brasil, mas é marcada também por pequenas passagens protagonizadas pelo indivíduo comum que sitoniza o aparelho em casa. Histórias que ele conta na entrevista a seguir.

O TEMPO - No último mês de setembro, o rádio completou 85 anos de vida no Brasil. Depois de tanto tempo e de tantas transformações tecnológicas, o meio se mantém firme até hoje. A que você atribui essa perenidade?
Fábio Martins -
A partir dos anos 1960, quando a programação radiofônica sofre uma modificação muito grande, com a popularização da TV, começa aquela conversa: "O rádio vai acabar! A televisão vai acabar com o rádio!" E não acaba nada. Porque o rádio tem o lugar dele, tem a sua história, o seu momento. Você pode estar fazendo a barba ouvindo rádio, a mulher pode estar costurando, na cozinha ou passeando, e ouvindo rádio ao mesmo tempo. A televisão, ao contrário, exige atenção completa. O rádio, não: você pode ouvi-lo em qualquer circunstância. Essa é uma grande vantagem do rádio. Por isso ele não morreu e não morrerá. Veja bem: o rádio deu origem à televisão e, posteriormente, ao telefone celular. Ele é a origem tecnológica de tudo isso. O rádio foi invadindo essas tecnologias todas. Você tem rádio no computador, na Internet, no celular, em todos os veículos.

É interessante que, a cada nova tecnologia que surge, o rádio avança. Em vez de se tornar obsoleto, o meio vai assimilando e se apropriando das novas tecnologias para seu uso próprio. Exatamente. Com o uso do celular no rádio, por exemplo, você poderia entrevistar da Amazônia, de cima duma árvore, um chimpanzé, se ele falasse. O celular representou um progresso absurdo para o rádio. Porque se acontecer qualquer coisa hoje, em qualquer ponto da cidade ou do Estado, você, com o celular, tem a possibilidade de comunicação radiofônica. A televisão vai levar o quê? Aquela parafernália toda, carro, câmera, equipamento de iluminação...

Podemos falar que hoje 100% das pessoas têm acesso ao rádio?
Todo mundo tem rádio. O rádio está no celular, no MP4, em aparelhos do tamanho de uma caixa de fósforos. É como a luz elétrica. Mais ainda: lá no meio rural, o sujeito às vezes não tem luz elétrica na casa, mas ele pode pegar o radinho, colocar uma pilha e ouvi-lo. Então é um meio de comunicação universal demais. Eu não vejo como substituí-lo.

Já falamos do presente do rádio, mas só nas questões tecnológicas. Agora, que posição ele tem hoje socialmente?
Hoje em dia, existem muitas possibilidades. Estou fazendo, por exemplo, uma experiência com rádio educativa em escolas periféricas, num projeto de extensão da UFMG. Os alunos começam a produzir programas e se apaixonam pelo rádio. Esse projeto de rádio educativa começou na escola Glória Marques Diniz, em Contagem, em 2003, e apaixonou tanto os meninos que estamos conseguindo fazer, de fato, educação através do rádio - montamos programas em que eles falam das coisas da comunidade, do entorno da escola, dos problemas da escola e tratam também de assuntos curriculares, da grade curricular da escola. Tem sido uma coisa muito boa - diminuíram as pichações, melhoraram a auto-estima, a convivência entre eles, o respeito mútuo. Acho uma coisa sob o aspecto da educação muito interessante. O rádio como envolvimento com as comunidades - as rádios comunitárias - também tem um poder enorme para educar.

Falando em rádio comunitária, como foi sua experiência na Santé FM?
Foi uma experiência jornalística, com um programa que durava a manhã inteira. Mas não deu certo porque a rádio foi lacrada pela Polícia Federal nos anos 1990. Ela foi lacrada porque era uma emissora comunitária irregular. Além disso, ela se tornou insuportável para os meios radiofônicos porque era uma rádio polêmica.

Sempre existiu muito embate na questão das rádios comunitárias. Como você vê isso?
Eu não sou especialista mas vou dar uma opinião pessoal. As rádios estavam avançando, causavam problemas de ordem técnica e o governo regulamentou. Não vamos analisar se a regulamentação é boa ou má. O que eu quero falar é o seguinte: eu acho que as rádios comunitárias são absolutamente necessárias. Você já imaginou uma cidade como Morro do Pilar, onde eu nasci, ter uma rádio comunitária que transmita a cultura local, as coisas locais, que fale para o povo as coisas nossas? Maravilhoso isso. E que ajude a educar. A rádio comunitária é uma coisa muito útil, muito séria. Agora, o que ocorre: quem não quer a rádio comunitária? Quem tem as grandes cadeias radiofônicas, quem tem uma emissora que está dando muito dinheiro. Porque a rádio educativa não pode fazer publicidade, mas a rádio comunitária pode - como acontece com a Rádio Favela. Então ela dá dinheiro. Dá dinheiro e avança no mercado. O problema econômico está estabelecido. O dono de uma grande emissora não quer uma rádio comunitária incomodando ele, ou tirando audiência dele. Mas continuo afirmando que a rádio comunitária é importante para as pessoas, para as comunidades, para o povo. Ela carrega a possibilidade de ser um veículo de educação.

Voltando mais no passado, você foi repórter de política da rádio Itatiaia, nos anos 1960, em plena ditadura. Como foi acompanhar como repórter o golpe militar?
Eu era um jovem repórter da Itatiaia quando fiz a famosa entrevista com o general Carlos Luis Guedes, na noite do dia 30 de março (um dia antes do golpe), que, junto com o general Mourão Filho, marchou rumo ao Rio para se juntar aos militares de lá e aplicar o golpe. Tomei o maior susto quando ele me disse que iria depor o presidente João Goulart.

Que sentimento você tem agora em relação ao seu longo relacionamento com o rádio?
Fui repórter e locutor político durante muito tempo. Viajava o país, todas as crises eu acompanhei, o movimento estudantil, entrevistei Brizola, João Goulart, toda a direção de esquerda nacional. De certa forma, participei dessa militância. Isso foi uma coisa que me tocou muito: o fato de eu poder colaborar com uma tentativa de transformação social. Depois deu no que deu, entramos no grande túnel escuro e de lá custamos a sair. E felizmente saímos. Olha: democracia é muito importante. Que bom que hoje eu posso falar isso que estou falando e você pode escrever o que quiser. Porque quando não pode... você só é capaz de medir isso no momento em que constata que não pode.

Você falou de momentos importantes da história do rádio no Brasil, a partir de seu contexto político. Gostaria agora de ouvir sobre sua própria relação afetiva com o meio e com os ouvintes.
Eu era repórter, mas como diziam que a minha voz era muito boa, a direção da rádio (Itatiaia) determinou que eu deveria fazer um programa. Então fui para o estúdio apresentar um programa chamado "Cabral Descobre Tudo". O que era o Cabral? Era aquele símbolo mesmo do Cabral que descobriu o Brasil. E o que era o programa? Os ouvintes escreviam fazendo perguntas incríveis, vinha o Cabral e respondia tudo. Foi um momento muito interessante, de muita afetividade, porque as pessoas telefonavam, falavam com o programa. O ouvinte falava com uma moça que era secretária do programa e ela respondia: "Fique tranqüilo que Cabral vai responder. Porque Cabral descobre tudo." Mas percebi com esse programa uma situação estranha: o rádio lida muito com a solidão humana. A solidão hoje no rádio é motivo até de estudo. A professora Nair Prata publicou um artigo na USP sobre os solitários noturnos, os insones que ficam procurando uma companhia, querendo cobrir sua carência afetiva.

E o rádio tem essa característica de falar para o indivíduo...
O rádio fala para cada um individualmente. A mensagem dele é dirigida diretamente. E se pintou a solidão... "Ah, esse locutor está falando tão bonito." E telefonam. Mas as pessoas que telefonam querem encontrar no locutor que está falando uma figura idealizada, imaginada. E às vezes não é assim, a realidade é outra. Certo dia chegou uma moça na Itatiaia, me cumprimentou e disse: "Quero falar com o locutor Fábio Martins." Então eu disse que era eu. Ela falou: "Não." Eu não entendi o "não" dela na hora. "Não como? Sou eu sim." "Fábio Martins? É você? Ah não..." O que ela queria dizer com aquele não: aquele Fábio que ela ouvia e imaginava, que era sua companhia, o seu amor, sei lá o que mais dela, não correspondia com a realidade. Eu era uma pessoa que ela admirava, que tinha uma voz linda, não era aquele corpo que estava diante dela. Eu disse: "Eu infelizmente sou assim." E Ela: "Até logo." Essas coisas acontecem no rádio.

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