FIT-BH

Pelo direito de estar no mundo

Artista trans Jo Clifford apresenta 'Eve', trabalho autobiográfico que também versa sobre a morte

Por Gustavo Rocha
Publicado em 20 de setembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Quem vê a senhora de quase 70 anos e a candura no olhar dela não imagina as histórias repletas de violência, preconceito e dúvidas que ela carrega em seu corpo. A artista trans escocesa Jo Clifford apresenta “Eve”, quinta (20) e sexta-feira (21), dentro da programação do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte.

Em cena, ela conta a descoberta de sua identidade trans, por meio de papéis femininos nas peças encenadas na escola, e de como isso gerou um sentimento conflituoso, também em relação ao teatro.

“Eu amava estar no palco, havia encontrado minha vocação. Mas também descobri que eu era muito mais feliz sendo uma garota. Estava tão assustada e envergonhada com essa descoberta que, tristemente, isso infectou meus desejos em relação ao teatro. Assim, só fui encontrar minha voz como dramaturga nos meus 30 anos. E só fui me redescobrir como atriz e performer quando já tinha mais de 60 anos”, pontua ela.

Por meio de fotografias de sua juventude e vida adulta, a artista espera que sua autobiografia consiga atrair o olhar e a sensibilidade de um público diverso, pois, segundo ela, a peça é capaz de falar sobre coisas grandiosas e universais, como a morte. “Tive muita sorte de conhecer minha esposa quando eu tinha 21 anos. Foi amor à primeira vista. Apesar das minhas dificuldades, fomos felizes juntos por 33 anos, até que ela foi vítima de um câncer no cérebro em 2005. Depois da morte de minha esposa, tornou-se impossível para mim seguir vivendo como um homem. Além dela, minha mãe morreu tragicamente quanto eu tinha 12 anos. Então, a peça também é sobre amor e perdas e como sobrevivemos a elas. Também fala de como lidamos com a morte e com o fato de que todos vamos morrer”, destaca.

De maneira sutil e poderosa, Jo espera que “Eve” ecoe como um trabalho com contundência política. “Obviamente eu quero desafiar o preconceito, mas não desejo fazer isso como ameaça, pois não é efetivo ou sábio. A peça é mais gentil, mas espero que justamente essa gentileza seja muito mais poderosa. ‘Eu tenho todo direito de estar no mundo’ é uma frase importante de ‘Eve’. Se os direitos humanos são políticos, então, sim, essa peça é política. Vivemos um ponto de virada. Temos que evoluir novos sistemas políticos, sociais e econômicos para sobreviver à crise ecológica atual. E nossa identidade de gênero, nossa compreensão do que é ser homem ou mulher, é muito importante nisso. Não é por acaso que a maioria dos candidatos conservadores de direita sentem a necessidade de serem machistas e realçar sua masculinidade”, ressalta Jo.

Empatia. Jo destaca que as artes têm a capacidade de encorajar as pessoas a encararem a necessidade de mudança e de imaginar maneiras novas, melhores, mais justas e mais harmoniosas de estar no mundo. Ela destaca o teatro, em particular: “O teatro oferece a todos uma espécie de treinamento em empatia. Uma capacidade de sentir e entender o outro. Isso é algo muito poderoso, pois nos faz lembrar que somos todos humanos e estamos juntos neste mundo. Por conta disso, compartilhamos a responsabilidade de fazer do mundo um lugar melhor”, garante ela.

 

Peça sem margem para polêmicas

Em 2016, Jo Clifford também esteve no FIT-BH com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu”, em que interpretava uma versão trans de Cristo. À época, na capital mineira, a peça não rendeu polêmicas com grupos religiosos. Entretanto, em 2017, a artista trans curitibana Renata Carvalho levou sua versão para os palcos, despertando a fúria de conservadores religiosos Brasil afora.

“Tenho ciência das ameaças e da possibilidade de censura no Brasil. Me sinto responsável pela Renata e pela produção de sua peça. Me preocupa que suas vidas possam correr risco por levar minhas palavras ao palco. Por outro lado, eu tenho um enorme orgulho de sua coragem”, ressalta Jo.

Ainda que o mundo passe por forte onda conservadora, a temática “mais branda” de “Eve” faz a artista acreditar que não será alvo de protesto em BH. “Seria estúpido ver protestos de quem não sabe nada sobre minha peça, especialmente quando não há nada ofensivo à sensibilidade religiosa. É triste ver cristãos que aliam seu pensamento ao preconceito e à intolerância. Eu também sou cristã. Vou à igreja quase sempre e tento me lembrar que essas pessoas também estão fazendo seu melhor, que compartilhamos a mesma fé, ainda que a compreendamos de maneira tão diferente. Torço para que um dia estejamos reconciliados”, finaliza.

Residência

Jo Clifford também ministrará uma residência de um dia, voltada para histórias pessoais e sua potência narrativa para se transformarem em peça, poema ou história. Será no sábado, dia 22, das 14h às 17h, no Memorial Minas Gerais. No total, são 15 vagas.

Agenda

O quê. “Eve”

Quando. Quinta (20) e sexta (21), às 20h

Onde. Teatro Marília (Avenida Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia)

Quanto. R$ 20 (inteira)

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