Literatura

Quando a escrita desvela

O jornalista mineiro Nirlando Beirão revisita memórias e relata doença no livro 'Meus Começos e Meu Fim'

Por Carlos Andrei Siquara
Publicado em 27 de maio de 2019 | 03:00
 
 
 
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“O País da Doença é uma terra de exílio. Eu me sinto um exilado, mesmo que seja grotesco e injusto me comparar aos exilados de verdade – aqueles milhões de infelizes que perambulam por terras e mares em busca de um teto seguro e de um naco de pão”, desabafa o jornalista mineiro Nirlando Beirão em um dos textos que compõem seu novo livro “Meus Começos e Meu Fim” (ed. Companhia das Letras).

Diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) em 2016, o escritor viu sua rotina mudar bruscamente e seu corpo deixar de responder como gostaria, em razão dos impactos dessa doença degenerativa. Diante do peso dessa palavra, que “pinçou a alma quando o médico a pronunciou”, Beirão resolveu lidar com seus medos por meio da escrita.

“A partir do diagnóstico, foi como se um véu embaçado tivesse descido à minha frente, me afastando e me protegendo da realidade. Escrever foi rasgar esse véu”, revela Beirão em entrevista realizada por e-mail. Se para ele a escrita foi motivada por esse desejo de conciliação, ao fim desse percurso, o que ele acabou levando para o papel não se limitou a ser um relato médico ou terapêutico.

Como pontua o jornalista Ricardo Kotscho, Beirão, em seu livro, vai além, oferecendo ao leitor reflexões produzidas com a nitidez e a elegância de quem domina a escrita, sendo o mineiro um dos mais respeitados jornalistas do país. “Nesse livro, (Beirão) reúne histórias do passado para confrontá-las com as adversidades enfrentadas por alguém com uma doença que impõe debilidade muscular progressiva, com graves limitações físicas. O resultado é uma reflexão profunda sobre o significado e a fragilidade da existência humana”, comentou Kotscho em seu site.

Memórias

Enquanto comenta sua própria condição, Beirão também introduz no livro casos ligados à sua família. Assim, a história de seu avô, um padre de origem portuguesa que deixou a batina para casar-se com sua avó em Oliveira, no interior de Minas Gerais, surge entrelaçada às suas memórias. “A saga do meu avô e da minha avó já vinha me assombrando faz tempo, pelo que ela tinha de segredo, tabu, culpa e também coragem. Devia esse relato, ainda que melindroso, à tia Nessília, aos meus primos, aos meus irmãos. A minha condição atual, pensei em refletir e narrar num blog. À medida em que fui escrevendo, as duas peças começaram a se encaixar”, diz Beirão.

Contudo, ele não compreende o trabalho como uma autobiografia. “A maior parte das recordações se reportam à infância e à minha relação com essa família. Quis guardar o frescor do olhar de garoto. Mas algumas reflexões foram impostas pelo que estou passando: meus sonhos, minha carreira, a paternidade, a política, a religião”, sublinha.

Belo Horizonte, Ouro Preto, entre outras paisagens de Minas Gerais, também emergem nos relatos do autor, radicado em São Paulo. “Meus sonhos noturnos são povoados do céu de Ouro Preto e ressoam os sinos das igrejas barrocas”, divaga Beirão. Se sua condição física impõe limitações, para ele, narrar é uma maneira de romper com o “exílio” e alcançar os mais diversos lugares. “Escrever é embarcar num tapete voador que leva a gente aonde quer”, poetiza.

Reflexões a partir do câncer

A jornalista Daniella Zupo, de maneira análoga, mas obviamente distinta da experiência vivida pelo jornalista e escritor Nirlando Brandão, recorreu à escrita quando recebeu o diagnóstico de câncer alguns anos atrás. Ela começou os primeiros registros em um diário, que depois ganhou o formato de livro, batizado “Amanhã Hoje É Ontem” (ed. Ramalhete) e publicado em 2017.

Daniella explica que estabelecer essa relação com a palavra foi fundamental para elaborar aquele momento. “Eu me vi subitamente arrancada da minha própria vida e precisei me afastar do meu trabalho na TV para me submeter a uma rotina intensa de tratamento. A única maneira de lidar com isso foi por meio da escrita”, relata Daniella.

Após começar o diário, ela teve a ideia de criar uma websérie, a fim de abordar o tema, a seu ver, ainda marcado por tabus. “Eu não tinha a menor experiência com esse tipo de diagnóstico. Ninguém da minha família havia passado por isso, e percebi que havia muita desinformação em relação ao câncer. Ele ainda é recebido como uma sentença de morte”, pontua a jornalista.

A partir dessa compreensão, ela viu que compartilhar sua história era uma maneira de humanizar a relação com a doença, algo que sentia falta quando se propunha a pesquisar sobre o tema. “Vi na situação que estava passando uma grande possibilidade de transformação, e, ao escrever, acabei provocando reflexões mais amplas que dizem respeito à vida”, diz Daniella.

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