Sociedade

Quando apenas citar não é suficiente

Narrativas, seja do universo do cinema ou da literatura, que abordam a escravidão sem problematizá-la são cada vez mais rejeitadas pelo público

Por Carlos Andrei Siquara
Publicado em 11 de março de 2018 | 03:00
 
 
 
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A escravidão no Brasil durou mais de 300 anos, e foi principalmente a partir do século XIX que o sistema baseado na exploração compulsória da mão de obra de povos oriundos do continente africano passou a fazer parte dos escritos de vários autores brasileiros. São exemplos Maria Firmina dos Reis, Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães e Machado de Assis. O que muda entre os trabalhos concebidos é a perspectiva adotada sobre os escravizados.

De lá para cá, outras narrativas somam-se a essa tradição, seja na literatura ou até mesmo no cinema, sem deixar de levantar polêmicas, como o filme “Vazante”, da diretora Daniela Thomas, bastante criticado durante sua exibição no Festival de Brasília, no ano passado. A diretora foi criticada por lidar com a escravidão de maneira superficial, relegando-a a um papel secundário na trama.

Mais recentemente, é o livro infantojuvenil “Amali”, da escritora mineira Jéssica Macedo, a ser questionado em relação à abordagem que faz do tema.

Publicado primeiramente como “A Escrava e a Fera”, o título foi rebatizado após diversas reações negativas ao original. “A princípio era para ser apresentado como uma releitura do conto de fadas (“A Bela e A Fera”). Devido às críticas e alguns paralelos negativos em relação à possibilidade de um relacionamento abusivo entre o Fernando e a Amali, eu optei por desassociar o título”, relata Jéssica.

Fernando é o proprietário de uma fazenda de Minas Gerais, onde Amali, após ser sequestrada em seus país de origem, é levada pelo feitor Sebastião para ser escravizada, embora Fernando, por deixar a cargo do empregado toda a administração do espaço, acredite que Amali seja uma empregada remunerada. Deprimido após a morte de sua esposa, ele mantém-se em contínuo isolamento, o que, no título, é usado para justificar o desconhecimento do barão sobre o que acontece em suas terras.

Não só o título da história foi questionado, mas o enredo em si. Afinal, “Amali” narra o enlace amoroso entre a protagonista, vista como uma heroína, e Fernando, que, apesar dos ideais abolicionistas, não deixa de ser escravocrata. “Entendo que o desenvolvimento do enredo da forma como foi feito revela falta de conhecimento histórico, social, político e, principalmente, é fruto de desinteresse em adquirir letramento racial ao tratar de um assunto tão sensível. Não há heroísmo em ‘se apaixonar’ por um senhor de escravos no contexto do Brasil do século XIX”, comenta Lívia Teodoro, que é ativista e autora do blog Na Veia da Nêga.

“As relações sexuais entre as mulheres escravizadas e os senhores eram estupro. Não havia consentimento, não havia preocupação com o corpo dessa mulher, nem com seu bem-estar; no máximo somente o cuidado de não danificar muito essa mercadoria, que deveria estar em boas condições para ser usada novamente, seja no tipo de serviço que fosse”, sublinha ela.

Após a repercussão negativa nas redes sociais, Jéssica se pronunciou, via Facebook, defendeu que Amali “não é uma mulher submissa” e ressaltou que “o livro jamais romantiza estupro”. Contudo, caso fosse escrever a história hoje, ela afirma que faria diferente. “Talvez eu tivesse feito dele um livro mais denso e abordando melhor algumas coisas que são apenas citadas. Por exemplo, a religião africana, que durante meus estudos me atraiu muito e é algo com que não temos contato na escola”, diz Jéssica.

“Nós aprendemos sobre os gregos, sobre Zeus. Mas a cultura africana, Oxum e os outros Orixás não são sequer citados. A origem da umbanda e do candomblé no Brasil é algo que só aprendi estudando para escrever esse livro”, acrescenta ela.

Heranças. Estereótipos construídos no passado podem continuar reverberando no presente, principalmente quando o assunto é a sociedade brasileira do período escravocrata. Para a pesquisadora e doutora em literatura Juliana Fillies Testa Muñoz, títulos como “Amali”, inclusive, podem reafirmar essas visões preconceituosas em vez de problematizá-las.

“Embora tente fazer da heroína uma personagem dinâmica e forte, o desfecho romantizado da história parece enquadrá-la dentro de uma normativa em que a mulher negra aparece como duplamente subordinada, isto é, por meio da raça e do gênero. A única forma de a protagonista sair da sua posição de marginalização social e participar ativamente do processo de abolição, convencendo o senhor de emancipar os escravos, é mediante o matrimônio”, reflete Juliana.


Obras mais recentes colocam vários estereótipos em xeque

Não só de títulos frágeis baseia-se o cenário brasileiro quando o foco são os impactos da escravidão. Desde os anos 2000, têm surgido diversas obras interessadas em apresentar pontos de vista que creditam aos negros seu protagonismo. A professora e autora do blog A Mãe Preta, Luciana Bento, ressalta, na produção recente, narrativas que frisam a resistência dessa população. “Existem, por exemplo, histórias que enfocam os quilombos, que foram uma das formas encontradas pela população negra para lutar pela liberdade. Esse tipo de literatura é muito importante para se reconstruir o imaginário popular em torno das questões raciais no país”, diz Luciana.

“Crescemos ouvindo que somos descendentes de escravos, mas, na verdade, somos descendentes de povos que vieram da África e aqui foram escravizados”, conclui ela.


Lastro dos romances abolicionistas

Além do paralelo com “A Bela e A Fera”, paira sobre o enredo de “Amali”, uma sombra de “A Escrava Isaura”, do escritor Bernardo Guimarães (1825-1884). Por exemplo, a forma como Fernando concede alforria à Amali, o que se assemelha ao gesto de Álvaro em relação à Isaura, como pontua o pesquisador José Lucas Benevides.

“Nos romances abolicionistas clássicos, como ‘A Escrava Isaura’, a alforria é uma dádiva, uma caridade de um homem branco magnânimo que se compadece da situação dos negros. É o que vemos no título em questão, pois Álvaro só pode alforriar Isaura por tê-la comprado e ser, portanto, seu senhor. Essa concepção ignora a luta dos negros pela própria liberdade. E coloca a caridade senhorial como único meio de obtenção da liberdade, reproduzindo o discurso escravocrata”, diz Benevides.

“A questão que se coloca nos romances abolicionistas é que tanto os homens escravizados quanto as mulheres negras nessa condição são objetos do discurso de homens brancos e pertencentes à elite. A exceção é o caso da romancista negra Maria Firmina dos Reis (1825-1917), também a primeira mulher a escrever um texto desse gênero na literatura brasileira”, conclui.

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