Cinema

'Sinto-me muito Cinderela'

Julia Katharine estrela o longa 'Lembro Mais dos Corvos', de Gustavo Vinagre, e dirige o curta 'Tea for Two'

Por Etienne Jacintho
Publicado em 21 de fevereiro de 2019 | 03:00
 
 
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O cinema tem um poder transformador de realidades. Não à toa, ele é frequentemente homenageado por seus realizadores em filmes como “Cinema Paradiso” (1988), de Giuseppe Tornatore; “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), de Woody Allen; e “Roma” (2018), de Alfonso Cuarón. O brasileiro Gustavo Vinagre, no documentário “Lembro Mais dos Corvos”, coloca o cinema como algo essencial na formação, no fortalecimento e nas relações de Julia Katharine, mulher trans que, diante das violências que sofreu na vida, teve nos filmes a sua âncora.

“O cinema me salvou”, diz Julia no longa-metragem, que estreia nesta quinta-feira (21) no cinema. Ao acompanhar as histórias dessa mulher, que, biologicamente, nasceu menino, mas nunca se identificou com o sexo masculino, o público descobre o porquê dessa afirmação. Afinal, os filmes a ajudaram a atravessar a adolescência e a manter o laço entre ela e a mãe. Sem eles, Julia não teria conhecido Vinagre, que tornou mais íntima essa relação dela com o cinema.

“Sinto-me muito Cinderela”, revela Julia. “Tudo o que está acontecendo é mágico. Eu era uma mulher de 30 anos sem perspectiva, sem direção profissional. Só tinha meus sonhos e, hoje, aos 40, me vejo fazendo o que gosto”. Além de atuar neste e em outros filmes de Vinagre, Julia está lançando “Tea for Two”, curta que dirigiu e roteirizou e que será exibido junto com “Lembro Mais dos Corvos”.

Julia é uma mulher trans distante de estereótipos. Ela fugiu da “bombadeira” – pessoa que aplica silicone industrial em procedimento ilegal. Sua feminilidade é algo natural, que aflora em suas maneiras, na fala, no olhar. Até mesmo quando xinga, sua voz soa doce.

Vinagre tem uma personagem interessantíssima, pois sua trajetória é forte, densa, triste em muitas passagens. No entanto, Julia não conta suas vivências de forma raivosa. Tampouco se faz de vítima. Ela é honesta com quem a vê sem a venda do preconceito. “Estou em paz com o que vivi, porque acho que tudo foi necessário para chegar aonde estou”, afirma Julia. “Não sei lidar com minhas tristezas de outra maneira. Tenho empatia, amor pelas pessoas e consigo lidar com as coisas que me aconteceram de maneira boa, transformadora”.

Foram muitas experiências. Aos 8 anos, ela sofreu abuso sexual, que, como em muitos casos, foi cometido por uma pessoa de confiança da família. Julia vê o abuso como o primeiro momento em que um homem a enxergou como mulher. Depois dele, vieram outros abusos e novas decepções. Vieram humilhações derivadas do preconceito e da visão que existe em torno das pessoas trans.

O documentário foi filmado em 12 horas, madrugada adentro. “Fiquei assustada, porque me senti exposta”, conta. “Mas é uma alegria que o filme esteja estreando agora, neste momento cheio de histórias de intolerância. Fica até como um manifesto”, acrescenta.

No filme, Vinagre foca sua câmera somente em Julia. Quando ele interfere na narrativa, apenas sua voz, quase inaudível, chega ao espectador – como Fernando Faro fazia em seu “Ensaio”. O recurso cria um laço invisível com o público, que sente como se estivesse lá a puxar as recordações de Julia. A única preocupação dela é com a família. “Agora, que o filme está indo para o mundo e minha família vai ver, estou apreensiva”, diz. “Mas tem coisas importantes de serem ditas, como a questão do abuso. É um tema relevante, até para alertar outras famílias”.

 

Filme nasceu comédia romântica, mas se tornou um melodrama sobre mulheres

Após atuar nos filmes de Vinagre, Julia decidiu criar sua própria história, e o resultado é o curta “Tea for Two”, o primeiro filme dirigido por uma pessoa trans a ser exibido nos cinemas em circuito nacional. “Gustavo (Vinagre) me estimulou a inscrever o projeto em um edital”, conta Julia. “Mas ele falou que não queria interferir no meu processo e que seria um filme tocado por mim”. O amigo só opinou após ver algum material já pronto. “Ele fez apontamentos, e fiquei feliz, porque percebi que não o decepcionei”, comemora.

“Tea for Two” conta a intimidade de um casal de mulheres que está separado, mas uma delas quer reatar o relacionamento. Nesse momento, surge na vida delas uma mulher trans, que dá um novo rumo a essa história. O curta fala sobre amor e afeto em suas muitas possibilidades. “Era para ser uma comédia romântica, mas virou um melodrama”, brinca Julia, que aborda também o preconceito que envolve as pessoas trans.

Mais do que melodrama, o curta (com Gilda Nomacce e Amanda Lyra) chega em uma época em que as mulheres – sejam elas trans ou cis – ainda são vítimas de violência e prejulgamentos. Enquanto se lança em novos projetos, Julia espera convites de outros diretores para seguir a carreira de atriz. “Mas é difícil pela minha sexualidade e miscigenação”, finaliza.

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