Quadrinhos

Sob as lentes de um coelho 

Cartunista argentino Ricardo Siri Liniers fala sobre o processo de criação de seu trabalho de sucesso, “Macanudo

Por Juliana Baeta
Publicado em 21 de abril de 2015 | 03:00
 
 
 
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O que uma azeitona, um duende e um pinguim têm em comum? Se você espera uma resposta engraçadinha ao que parece ser a introdução de um joguete, você está quase certo. É que, apesar de não terem nada em comum na vida real – a não ser que um dia um pinguim e um duende decidam juntos dividir uma azeitona – os personagens integram a mesma história no universo dos quadrinhos.

Criado pelo argentino Ricardo Siri Liniers, 41, o “Macanudo” começou a ser publicado pelo “Diario La Nación” em 2001, e hoje já arrasta uma legião de fãs na internet, muitos deles, brasileiros. Em junho deste ano, a oitava edição do quadrinho será lançada pela editora Zarabatana no Brasil.

Mas não é só de azeitonas, duendes e pinguins que se faz um “Macanudo”. O quadrinho traz também diversos personagens, como o “senhor que traduz o nome dos filmes”, o imaginário “Olga”, a menina apaixonada por livros e seu gato Fellini, e um simpático coelho de óculos, que vem a ser o autorretrato em cartoon do próprio Liniers.

Diferente do compatriota Quino, as tirinhas do “Macanudo” são lúdicas, metafóricas, e o tapa na cara é quase um afago na alma se comparado aos que a Mafalda costuma dar por aí. Liniers não é tão explícito ao falar sobre política, mas é um mestre na arte de falar sobre sentimentos e percepções humanas. Mesmo com inúmeros personagens, o leitor consegue se reconhecer ou identificar pessoas de seu convívio em quase todos. Do duende ao pesadelo. Da azeitona ao Misterioso Homem de Preto.

Liniers conversou com a reportagem, citou Clarice Lispector e se assumiu fã de Laerte. Confira a entrevista com o autor de “Macanudo”, um talentoso coelho de óculos.
 

Entrevista

Quando decidiu criar o “Macanudo”?

Antes do Macanudo, eu desenhava uma tirinha que se chamava “Bonjour”, e era publicada no jornal. Era uma tirinha semanal, não tinha que desenhar todos os dias. Foi Maitena (Maitena Inés Burundarena, escritora e cartunista argentina nascida em 1962) que me levou ao jornal “La Nación” e os obrigou a publicar o meu trabalho. Ela os convenceu da minha competência e contou qualquer mentira para que o fizessem. E foi aí que surgiu o “Macanudo”, onde a única ordem era a maior liberdade possível. Não era uma tirinha com um protagonista.

Sobre isso, por que os personagens de “Macanudo” são tantos e tão diferentes entre e si?

Primeiramente, acho que seria por falta de imaginação. Não sei como fizeram Quino e Schulz (Charles Monroe Schulz, cartunista norte-americano criador do Snoopy, 1922-2000) que se dedicaram por mais de 50 anos aos mesmos personagens. Eu preciso de muitos personagens para que aconteça muita coisa, não tenho tanta imaginação. E eu gosto que “Macanudo” tenha diferentes tipos de humor. Eu gosto que haja possibilidades. É como se estivesse lidando com uma caixa de lápis de cor e como se cada personagem tivesse uma cor diferente.

Já que você falou sobre Quino, o trabalho dele com Mafalda te inspirou de alguma maneira? Quais foram suas inspirações no início da carreira?

Quino não me inspirou tanto como quadrinista, e sim como ser humano. Eu aprendi a ler com Mafalda. Na minha geração, quase todos aprendemos a ler com Mafalda. E Quino tem isso do artista que quando você o lê não se torna só mais culto, e sim uma pessoa melhor. Ele tem uma visão muito humanista. Vejo isso também em artistas como Chaplin, Bob Marley e John Lennon.

As tiras da Mafalda possuem uma conotação política forte, enquanto as suas são mais lúdicas. Você também busca manifestar-se politicamente de alguma forma?

São diferentes lutas, partindo de diferentes perspectivas. Mas há sim a luta pela liberdade. Por exemplo, em “Macanudo”, todos os personagens são gays. Quando foi votado no Congresso o casamento entre pessoas do mesmo sexo, fiz uma tirinha sobre. Então, eu também tenho minhas lutas e protestos, mas de uma forma mais sutil.

Nas suas tirinhas, o coelho de óculos é um autorretrato? O que ele representa?

Sim. Eu gosto muito de contar com referências, gosto de pessoas que fazem stand-up, pessoas que analisam sua vida a partir de sua própria obra. E eu gostava de fazer isso, mas quando desenhava a mim mesmo, tinha um pouco de vergonha. Então optei por me disfarçar. Quando você vai a uma festa à fantasia, fica mais predisposto a pagar mico do que quando está vestido de si mesmo. Então, disfarçar-me de coelho me deu um pouquinho mais de liberdade. E sempre as histórias com o coelho são reais, coisas que acontecem comigo.

Você gosta de interagir com seus fãs e leitores pela internet? Acredita que a tecnologia e a interação com o leitor são recursos importantes para manter a leitura e o público?

Com a internet eu tive muita sorte. Na época de gerações anteriores à minha, como a de Fontanarrosa (Roberto Fontanarrosa, chargista e quadrinista argentino, 1944-2007), era diferente. Fontanarrosa me dizia muitas vezes que, quando fazia uma piada, seis ou sete meses depois o diziam “essa piada foi divertida”. Com o futebol, faz-se um gol e em seguida há 50 mil pessoas gritando e se abraçando. Nós, desenhistas, não tínhamos essa possibilidade, mas, a partir da internet, é só fazer um desenho, publicá-lo e as pessoas já estão opinando a favor e contra. Acho que ajuda muito também a derrubar fronteiras, que, de outra maneira, seria impossível. Para avançar uma fronteira antigamente eu teria que publicar em um diário (jornal) do Brasil para que os brasileiros me conhecessem um pouco. Ou publicar um livro. Agora isso já não faz falta. Me conheceram online e depois apareceram os livros.

 

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