Perfil

Toda a sapiência de Rincon

Rapper paulistano destaca-se na cena com ‘Galanga Livre’, disco de estreia em que debate questões sociais do Brasil

Por Raphael Vidigal
Publicado em 23 de julho de 2017 | 03:00
 
 
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No último ano do século XX, Rincon Sapiência, 31, começou a chamar atenção na cena com seu discurso moderno e contemporâneo. Uma das provas é o comentário mais “curtido” no link de seu primeiro álbum, disponibilizado no YouTube. “Gosto de ouvir Rincon Sapiência porque me sinto empoderada”, escreveu Ivy Vasconcelos, uma jovem fã do rapper paulistano que, ao surgir, ainda assinava Rincon X, MC Shato ou Manicongo, sendo que esta última alcunha aparece numa das faixas de “Galanga Livre” (2017), com a produção e 13 faixas autorais de Rincon.

“Acho importante falar sobre ancestralidade, sobre a história do Galanga (lendário escravo da tradição oral mineira). Pelo menos no meu álbum, partiu de uma ficção que criei, mas é baseada em verdades históricas, até porque o Brasil é o país fora do continente africano que mais contempla pretos no mesmo espaço geográfico”, explica o artista. Ao longo do álbum, títulos como “Crime Bárbaro”, “A Coisa Tá Preta”, “Ostentação à Pobreza” e “Ponta de Lança” anunciam, de cara, o que vem por aí, reforçados por versos do tipo: “meu verso é livre/ ninguém me cancela/ tipo Mandela/ saindo da cela/ (...) partiu para o baile, fugiu da balela/ batemos tambores, eles: panela”.

“O rap pode contribuir com a possibilidade de o ouvinte ser despertado com relação aos nossos assuntos sociais, a música é entretenimento, não temos o dever de ser um educador, mas, pela origem da cultura hip-hop e a tradição que se criou, acho importante esse tipo de discurso. A subversão e os signos da periferia não podem se perder, embora não ache que seja uma coisa obrigatória”, avalia Rincon.

Com um discurso politizado, o compositor não se furta a discutir o atual panorama brasileiro. “Eu vejo que a arte, no geral, passando por música, teatro, dança, todas essas vertentes, tem se manifestado de forma muito positiva. Isso contribui na formação de engajamento do cidadão para tomar o melhor posicionamento, embora, em contrapartida, os governos de São Paulo e federal estejam tomando posturas conservadoras que não dialogam com nossa proposta de arte”, detecta.

Parcerias. Antes da estreia em CD, Rincon obteve destaque com a canção “Elegância”, em que, contrariando preceitos do rap norte-americano, exalta, justamente, a simplicidade despida de bens materiais. Transformado em clipe, o single foi veiculado na MTV, onde, no mesmo ano de 2010, Rincon foi indicado ao Video Music Brasil na categoria rap. Para completar, participou do disco “Projeto Paralelo”, da banda NX Zero, na faixa “Tarde pra Desistir”. Já em 2017, participou do DVD em comemoração aos 50 anos de carreira do cantor Sidney Magal, protagonizando com o anfitrião um dueto na inédita “Um Brinde à Vida”.

“A música tem suas possibilidades, e com o rap não é diferente. Você pode estar fazendo um samba e colocar, em algum momento, acordes de jazz. Ou compor um blues e levar referências de outros gêneros musicais nos arranjos. Então, ser um artista de rap e dialogar com músicos vindos de outras áreas é unir linguagens artísticas ricas, cada uma com sua beleza”, infere o músico, que sugere mais pontos de encontro entre sua música e a do intérprete de “Sandra Rosa Madalena”.

“O Magal é esse cara que tem uma caminhada grandiosa, com uma música cheia de conotações latinas, quentes, e trabalha com sensualidade, detalhes que gosto muito e procuro colocar na minha música também, ao fazer, da minha forma, um som que seja quente e sensual”, avalia.

Influências. Além da inspiração, da observação e da experiência, Rincon ainda se vale de influências presentes em outros campos de atuação para criar sua arte. “O rap começa na poesia. ‘Ponta de Lança’ e ‘Elegância’ compus quando nem tinha a instrumentação ainda. É aquele lapso poético que chega e você capta. Quando comecei a trabalhar em oficina de MC e poesia, me baseava na literatura de cordel, que traz inúmeras possibilidades no encaixe da métrica, e também me identifico com esse lance de você ‘falar errado’ a terminação e a acentuação das palavras”, declara, incluindo em seu rol de admirados o quadrinista Stan Leen, cineastas como Quentin Tarantino (citado em “Ponta de Lança”), Glauber Rocha, Fellini e Godard e o poeta Neruda.

CRÉDITO
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“Galanga Livre”, álbum de estreia de Rincon Sapiência Ano: 2017 - Selo: Boia Fria Produções - Faixas: 13 autorais. Disponível em todas as plataformas digitais e no YouTube Participações: Lia de Itamaracá e William Magalhães

Rapper coloca em pauta convivência de mercado e arte

Habituado à contestação desde que era conhecido pelo nome de batismo, Danilo Ambrosio, o hoje Rincon Sapiência admite a presença de alguns dilemas em sua profissão, sendo um especialmente caro à ele. “Confesso que o equilíbrio entre arte e mercado não é o mais fácil de alcançar, mas é o caminho ideal, porque a arte tem que partir de forma natural, espiritual, sentimental, e, ao mesmo tempo, precisa ser sustentada dentro dessa sociedade que gira em torno do capital também, e ele precisa passar por quem vem da periferia igualmente”, afirma.

Rincon sustenta que essa condição não elimina o teor nem o posicionamento expressado em suas canções, ao contrário. “Com todos os anseios, os questionamentos e o posicionamento político que colocamos na nossa arte, a gente também faz parte e gira essa engrenagem. Também devemos ter direito e merecemos um maior conforto de vida, de lar, de comer bem, de vestir bem, ter equipamentos e recursos pra espalhar a nossa cultura com a melhor qualidade possível. A gente sabe que o capital está mais na mão das grandes companhias, mas ele tem que chegar para a gente também”, reivindica.

Rincon aproveita o ensejo para refletir sobre o cenário atual e a presença das plataformas digitais. “Para se consumir música, é até interessante a rapidez e o acesso, mas, para produzir, a meu ver, é uma forma de as grandes companhias voltarem a ter poder no mercado e lucrarem mais do que todo mundo, inclusive os autores”, reclama. E para quem acha que Rincon espera parado pelas coisas mudarem, ele logo avisa. “Minha cabeça já está funcionando para um projeto novo, além de clipes do ‘Galanga Livre’ que vou lançar”, diz.

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