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Villa-Lobos na bagagem

Marcelo Bratke Pianista

Por DANIEL BARBOSA
Publicado em 27 de fevereiro de 2010 | 17:31
 
 
 
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Convidado da abertura das atividades em 2010 da Filarmônica de Minas, na última terça, o pianista Marcelo Bratke é um dos maiores especialistas em Villa-Lobos do mundo, pelo trabalho de divulgação da obra do compositor que ele desenvolve. Tecnicamente cego até há quatro anos, ele fez uma cirurgia que, conforme diz, o permitiu enxergar melhor o Brasil.

Você é tido como um dos maiores especialistas do mundo na obra de Villa-Lobos. De onde e de quando vem esse interesse? Na verdade, esse título veio a reboque de um projeto que eu criei, chamado Villa-Lobos Worldwide, de divulgação internacional da obra dele. Tem várias ações envolvidas. A primeira é o fato de eu estar gravando a obra completa para piano solo de Villa-Lobos, o que totaliza oito CDs. É das maiores obras para piano solo do século XX. A segunda ação está nos concertos internacionais focados só na música de Villa-Lobos.

E onde exatamente foram esse concertos? O primeiro foi no Carnegie Hall, em 2008, depois levamos isso para Tóquio, Nagoya e outras cidades japonesas, em seguida passamos pela Inglaterra, Bélgica, Sérvia, França e Alemanha. Este ano, os concertos vão percorrer oito capitais do Leste Europeu, bem como outros países da Europa Ocidental e também a China. O interessante é que o concerto noturno pode ser só de piano ou com convidados. Em Tóquio, por exemplo, fomos eu, a Camerata Vale Música e a Fernanda Takai como cantora convidada. Para o concerto do Carnegie Hall, convidei o Dori Caymmi e a Rosana Lamosa, que é uma soprano brasileira. Nas apresentações que realizo à noite, em grandes salas de concerto mundo afora, faço com que os ensaios pela manhã sejam abertos para um público infantil. A ideia é introduzir um pouco da cultura brasileira para crianças em diversos países. A outra ação desse projeto Villa-Lobos Worldwide que temos desenvolvido é um documentário que vou fazer em inglês, para as TVs internacionais, em colaboração com as artistas plásticas Mariennita Luzzati e Renata Padovan. Vamos fazer o documentário ao longo dos próximos dez meses, em vários países, mostrando os passos de Villa-Lobos pelo mundo. É um projeto para ser desenvolvido ao longo de uns quatro anos. Vou lançar os discos do Villa no mundo inteiro - o primeiro sai daqui a alguns dias na Inglaterra e terá distribuição pela gravadora Quartz, em 30 países. No Brasil, será lançado pela Biscoito Fino. É um projeto que tem me ocupado muito.

Qual foi a motivação para criar esse projeto? Percebi, conversando com pessoas que dirigem salas de concerto em várias partes do mundo, que Villa-Lobos não desfruta da visibilidade internacional que se supõe. Essas pessoas me disseram que conhecem Villa-Lobos, mas não conhecem a música dele. No resto do mundo, não é uma coisa tão programada como a gente imagina. Fiquei meio chocado com isso e resolvi fazer esse projeto.

Você tem gravações e desenvolve projetos também na área da música popular. Existe, na sua opinião, a distinção entre os universos da música popular e da música erudita? Eu gosto muito de fazer com que a música erudita entre em diálogo com outras áreas, o jazz, a bossa nova. Já inclusive trabalhei com a Sandy, fiz o concerto "Da Bossa Nova ao Jazz", que, apesar do nome, passa também pela música erudita. Salvo engano, foi o único espetáculo com esse perfil que a Sandy fez até hoje. E tem também o trabalho com a Camerata Vale Música, que envolve meninos da periferia de Vitória. É uma orquestra de câmara, mas com 30% de músicos oriundos do universo da música popular, mais especificamente percussionistas, jovens que aprenderam a tocar na rua, nas igrejas. Já fizemos duas turnês pelo Japão e uma pelo Brasil. Vamos realizar outra circulação nacional este ano. Gosto de fazer com que a música erudita amplie seu público. O erudito e o popular são gêneros diferentes, mas podem conviver num mesmo ambiente sonoro.

Como a Camerata Vale Música surgiu e o que te moveu a criá-la? Aos 44 anos, quando me submeti à operação nos olhos e comecei a enxergar bem, fui fazer um concerto no Carnegie Hall que, aliás, foi minha estreia lá. Tive a ideia de ter percussionistas populares comigo no palco, executando músicas de Villa e de Ernesto Nazareth. Quando voltei para o Brasil, depois da cirurgia, vi com outros olhos meu país, atentando para essa questão do apartheid sociocultural, que é dramática. Convidei um grupo de percussionistas do Jardim Míriam, uma favela aqui de São Paulo, e programei de ensaiarmos durante três meses, intensivamente, para essa apresentação em Nova York. Comecei a fazer esse concerto com percussionistas e pensei: por que não criar uma orquestra com esse perfil? Encontrei no Espírito Santo um projeto da Vale que atendia a músicos eruditos e populares ao mesmo tempo, jovens em situação de risco social, que era o que eu queria. Isso surgiu em 2006. No ano seguinte, a gente começou a fazer turnês. Posteriormente, fizemos um DVD, com obras de Villa-Lobos, que saiu há uns dez meses. Chama-se "Alma Brasileira" e foi uma gravação ao vivo no auditório do Ibirapuera. Este ano, o compositor enfocado, com o qual vamos trabalhar, é Ernesto Nazareth. Já inclusive gravamos um CD, que será lançado na turnê deste ano, quando vamos fazer dez capitais brasileiras, Belo Horizonte inclusive, se não me engano, em agosto.

A Camerata Vale Música está envolvida com esse projeto Villa-Lobos Worldwide? Em alguns concertos, como os que fiz na Sérvia, em Belgrado, e na Holanda, em Haia, por exemplo, a Camerata se apresentou comigo fazendo Villa-Lobos, mas em muitos outros é só piano.

Você hoje acumula uma larga experiência internacional. É possível estabelecer uma comparação entre o cenário da música erudita no Brasil e no resto do mundo? Em termos de estrutura, de público e de organização, o cenário da música erudita no Brasil tem avançado? Já se coloca em pé de igualdade com outras partes do mundo? Depende de com quais países. Na Europa e nos Estados Unidos, a estrutura é muito maior. Em qualquer cidadezinha norte-americana, você tem pelo menos uma orquestra e uma sala de ópera. Nos países europeus também. Aqui no Brasil, a música erudita se difunde nas capitais. No interior não tem nem vestígio. Mas, no geral, melhorou muito, temos ótimas orquestras, inclusive em Minas. Aprecio muito o trabalho do Fabio Mechetti e o que ele está fazendo à frente da Filarmônica de Minas é algo notável. Temos também a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e a Sinfônica Brasileira. Essas três, sim, estão no mesmo nível das grandes orquestras internacionais.

Antes do concerto da última terça, você já havia trabalhado com a Filarmônica de Minas Gerais ou com o maestro Fabio Mechetti? Na verdade, fiz um único concerto com o Mechetti, com a Osesp, em São Paulo, quando eu tinha 19 anos, e foi dos melhores da minha vida, sinceramente, muito por causa dele. Posteriormente ficamos muito amigos, ele teve essa carreira brilhante nos Estados Unidos, o que o deixou um pouco longe, mas graças a Deus vocês o trouxeram de volta. Pude constatar que a Filarmônica, depois do Fabio, se tornou uma grande orquestra. Ele fez um trabalho rápido e excelente. Minas tem uma tradição musical muito bacana no Brasil, é uma espécie de antena que capta e processa referências muito diversas.

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