Som pesado

Nomes do heavy metal nacional fazem ressalvas e elogios à carreira do Sepultura

Integrantes de Overdose, Witchhammer e Viper refletem sobre a importância da banda que alcançou repercussão mundial

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 26 de fevereiro de 2024 | 06:30
 
 
 
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Enquanto jogavam bola no quintal de casa, um barulho chamou a atenção da dupla. “Era um som estranho, que depois fui descobrir que era uma guitarra distorcida, e, o que eu pensei ser um tambor, era, na verdade, uma bateria”, relembra Casito, baixista, vocalista e fundador do Witchhammer, uma das mais respeitadas bandas de thrash metal de Belo Horizonte.

Ao descer a rua ao lado do primo, ele se deparou com “uma galera de malucos, nem tão cabeludos porque os cabelos ainda estavam crescendo”, e, a convite de Silvio Bibika, que se tornaria o primeiro empresário do Sepultura, tiveram a oportunidade de estar presentes quando os irmãos Max e Iggor Cavalera, Paulo Jr. e Wagner Lamounier “ligaram o amplificador pela primeira vez”. 

“Sou vizinho do Paulo Jr. e era moleque, devia ter uns 13 ou 14 anos, e me orgulho de ter assistido ao primeiro ensaio do Sepultura”, conta Casito. As “primeiras baquetadas” de Iggor o impressionaram de cara. Ele atribui ao pioneirismo grande parte do sucesso da trupe, que decidiu encerrar suas atividades após quarenta anos, e, desde 2006, convive com a ausência de seus dois fundadores. Uma década antes, Max deixou o grupo que ele próprio batizou. “Eles criaram uma rede de networking antes de existir esse conceito”, pontua Casito, que dá como exemplo a dedicação dos músicos aos fãs. 

“Todas as bandas recebiam cartas, na época que elas ainda eram feitas de papel, e eles respondiam todas, o que criou uma rede de contatos gigantesca, muito bem feita e sincera, ampliando as possibilidades de shows fora daqui, em São Paulo, no Rio, em Pernambuco”, ressalta. Somada à “qualidade do som, que deu uma carimbada na repercussão e em tudo que eles conquistaram”, não tardou para o Sepultura se consagrar como um fenômeno de massa, especialmente no segmento do heavy metal. 

‘Mete bronca, que eu seguro a onda!’

Casito, no entanto, tece outra consideração. A situação econômica da família de Max e Iggor também teria contribuído, em sua visão. Os dois eram filhos de um funcionário do consulado italiano em Belo Horizonte. “O conforto que a mãe (Vânia) proporcionou a eles, dizendo ‘mete bronca, podem se dedicar só à banda que eu seguro a onda’ foi um diferencial. Era muito difícil para os músicos das outras bandas abandonar os estudos ou qualquer outro emprego formal, largar tudo para focar na música durante as 24 horas do dia”, pontua. 

Guitarrista e mentor do Overdose, uma das mais antigas bandas de metal do Brasil, Cláudio David teve uma relação inversa com o Sepultura. Antes mesmo de formarem o conjunto, Max e Iggor iam à sua casa conferir os discos importados que Cláudio colecionava. Além disso, ele foi colega do guitarrista Jairo Guedz, que integrou os primórdios do grupo, no Colégio Santo Antônio. O Sepultura chegou a abrir um show do Overdose, com quem dividiu o inaugural LP “Bestial Devastation”, de 1985, mas Cláudio admite que o estilo dos amigos nunca foi o seu preferido. 

“Eu estava em outro astral, numa onda mais técnica, mais virtuosa, não gosto muito desse death metal com cara de thrash europeu, aquele vocal gritado, atonal, sem muita teoria, acho pouco musical, sou para o lado mais trabalhado do Judas Priest, passando por Metallica, indo até o Slayer, no máximo”, pondera. Ele, no entanto, não tira os méritos do Sepultura, “no ramo que escolheram”. “Eles batalharam muito, se arriscaram, correram atrás. Com muita competência, tanto que foram reconhecidos mundialmente. Fizeram praticamente tudo que podiam para chegar a esse sucesso que tiveram, tanto do lado positivo quanto algumas coisas questionáveis também”, analisa. 

Embora tenham “perdido muita visibilidade com a saída do Max”, em 1996, o Sepultura, na opinião de Cláudio, segue gozando de “muita respeitabilidade no mundo todo”. “A notícia do fim da banda me surpreendeu porque acho que eles ainda têm lenha pra queimar, assisti a um show em 2017 e eles continuam muito afiados. Fica a dúvida se é uma estratégia para dar uma descansada e, daqui a pouco, eles voltarem”, sugere Cláudio. Vocalista do Viper e atualmente reconhecido como a principal voz do metal nacional, Leandro Caçoilo faz a mesma aposta. 

‘No meu coração, é um ‘até logo’’

“Acredito que pode ser um período sabático e, daqui a dez anos, eles vão se reunir novamente para gravar um disco, fazer um show. No meu coração, é um ‘até logo’, mas, se for real esse fim da banda, vai ser muito triste”, lamenta Caçoilo, que reputa o legado do Sepultura como “difícil de superar ou mesmo igualar para uma banda de heavy metal brasileira”, e compara o feito ao Iron Maiden.

“Eles lançaram um disco melhor do que o outro na sequência, que até hoje são relevantes para o heavy metal, isso pavimentou o caminho”. Casito é outro que usa a expressão “lenha pra queimar” e “bala na agulha” ao comentar o término do conjunto. “Mas eu entendo, é muito digno terminar estando bem, sem brigas, com a missão cumprida, e ir aproveitar a vida”, diz. 

Ele considera que o Sepultura teve a importância de “mostrar para o mundo que o Brasil era muito mais do que bossa nova, e que Minas Gerais não era só Clube da Esquina, com uma escola de metal tão boa quanto a alemã e a americana”. Hoje, ele é crítico ao heavy metal, por perceber que “o movimento se distanciou da comunicação com o público e se fechou em bolhas, não consegue mais retratar a realidade, como o rap faz, por exemplo”.

“No entanto, a força dessa arte eterna é que ela não é simplesmente uma música, não tem a ver só com o cara colocar um disco para tocar ou ir ao show, é um estilo de vida, eu tenho uma personalidade heavy metal, acordo heavy metal, sou heavy metal 24 horas por dia, mais ou menos como o reggae está para a religião rastafari”, afiança Casito. 

Resistência 

Cláudio David escolhe a palavra “resistência” para designar a essência do heavy metal. “O blues começou como protesto e o rock tem essa tendência. O metal que eu curto é comprometido socialmente, tem uma visão crítica e estamos em uma época de conflitos, com a extrema direita tomando o poder em diversos países, inclusive no Brasil. Portanto, o questionamento do heavy metal está mais atual do que nunca, se ele não é de esquerda, é contra a direita, a injustiça, a fome, o excesso de lucro produzido pelo capitalismo, o sistema político, social e econômico. Nietzsche (filósofo alemão) dizia que Deus ‘estava morto’ no século XIX, e as religiões estão mais fortes do que nunca”, sublinha. Caçoilo garante que “o heavy metal nunca vai morrer”. “É uma ferramenta de fazer o bem para as pessoas através da música e, também, uma forma de protesto”, finaliza. 

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