A maioria dos vampiros que permeiam os filmes modernos são personagens charmosos e donos de um certo je ne sais quoi que só os mortos-vivos possuem.
Da elegância contumaz de Bela Lugosi (em “Drácula”, de 1931) até o magnetismo hipnótico de Gary Oldman (“Drácula de Bram Stoker”, de 1992), o insaciável príncipe das trevas tem sido retratado como um sedutor irresistível que ataca suas presas com uma precisão letal.
Mas nem sempre foi assim. Em “Nosferatu, Uma Sinfonia de Horror” (1922), o famoso conde parece ter saído diretamente de um pesadelo: na tela, a terrível criatura é apresentada com longas presas de rato, orelhas pontudas e um rosto desumano – como um cruzamento medonho entre um morcego e Mefistófeles.
Considerado a primeira obra-prima do terror, o longa dirigido por Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931) completa cem anos de existência em 2022.
Rodado no auge do expressionismo alemão, o filme trouxe novas propostas e inúmeras inovações para o gênero, principalmente por explorar a subjetividade em seu roteiro e usar de distorções e contrastes estéticos em sua composição.
Sua influência no universo da Sétima Arte é tão marcante que cineastas de diferentes gerações – desde Alfred Hitchcock até Guillermo del Toro – se declaram fãs absolutos.
“Até hoje ‘Nosferatu’ é uma referência para qualquer realizador ou escritor interessado em histórias de vampiros porque tem todo um clima, todo um visual que em cem anos talvez nenhuma outra produção tenha conseguido superar”, explica o produtor e curador de mostras de cinema Breno Lira Gomes.
“Ele inspirou muita gente com suas citações, movimentos de câmera e mise-en-scènes. Francis Ford Coppola bebeu diretamente dele quando fez seu ‘Drácula’; Stephen King também o usou como referência quando escreveu ‘Salem’s Lot’, que é seu trabalho sobre vampiros. Então, pode se dizer que ele é um clássico entre os clássicos”, avalia.
Livremente adaptado no livro “Drácula”, do romancista irlandês Bram Stoker (1847-1912), o filme se baseia em elementos folclóricos e históricos do vampirismo, mostrando o personagem como uma criatura sombria e assustadora – bem diferente da versão higienizada propagada nas produções de Hollywood.
“Murnau soube transcrever para as telas a essência do Drácula, exatamente como ele aparece no livro de Bram Stoker”, aponta Gomes. “A gente vê no Conde Orlok uma figura horripilante, repugnante, que mais causa asco do que atração, o que difere muito, por exemplo, da encarnação feita por Bela Lugosi e pelos vampiros que foram surgindo nos cinemas, na televisão, no teatro e até mesmo na literatura no decorrer dos séculos 20 e 21”, afirma.
Entre a ilegalidade e a eternidade
Antes de se consagrar como uma das maiores obras do cinema, o filme de Murnau quase foi perdido para sempre da história justamente por sua ligação com Bram Stoker.
“A obra foi produzida pelo artista plástico e ocultista Albin Grau, que decidiu adaptar o enredo sem se preocupar em adquirir os direitos com a família Stoker”, detalha Carlos Primati, pesquisador de cinema voltado ao gênero fantástico.
Segundo ele, Grau não obteve autorização para transformar o livro em filme, e por isso a viúva do escritor decidiu entrar com uma ação judicial alegando que o projeto era um plágio da obra de seu marido.
Apesar das restrições, Murnau insistiu em seguir com a produção, mudando somente os cenários e os personagens.
“A estrutura da história foi mantida, com praticamente todos os personagens centrais delineados de maneira quase idêntica à do romance, mas com seus nomes trocados”, frisa Primari.
Desta maneira, o Conde Drácula passa a ser o Conde Orlok (e não Nosferatu); Jonathan Harker é Hutter; Mina é Ellen; Renfield é Knock, e assim por diante. “A justificativa mais plausível para a mudança dos nomes seria uma tentativa de fazer com que o roteiro soasse como uma obra original", acrescenta.
Por fim, não adiantou muito, pois a mulher de Stoker foi à Justiça exigindo o banimento da obra das salas de cinema e a destruição de todos os rolos e negativos do filme.
“Nosferatu” só sobreviveu à extinção por sorte, já que algumas de suas cópias acabaram chegando ao solo estadunidense, onde a história encontrava-se em domínio público.
“O processo movido – e vencido – por Florence, a viúva de Stoker, determinou que todas as cópias do filme fossem destruídas, incluindo os negativos originais da câmera. Diante da iminente destruição do filme, os produtores se apressaram em enviar cópias para fora da Alemanha, na tentativa de garantir a preservação da obra”, enfatiza Carlos Primati. “Foi esse desrespeito a uma ordem judicial que permitiu que cem anos depois ele ainda possa ser visto, apreciado, estudado e interpretado; e, acima de tudo, celebrado”, diz.
E foi justamente em condição de clandestinidade que o filme também chegou ao Brasil, sete anos depois de sua estreia na Europa.
“Ele foi lançado sem muito alarde nos cinemas do Rio de Janeiro, em julho de 1929, com o curioso título ‘O Lobisomem’ (na grafia da época, ‘O Lobishomem’). Os registros da época não indicam que tenha feito qualquer sucesso significativo por aqui”, menciona Primati.
Espelho de sua época
Um dos expoentes do expressionismo alemão, o filme serve como um reflexo dos medos, das tristezas e do pessimismo que assombravam a sociedade alemã logo após a Primeira Guerra Mundial.
“O cinema ao mesmo tempo espelha-se e retrata a sociedade na qual se insere. O clima de instabilidade da Alemanha, a derrota na Primeira Guerra e a ascensão do nazismo são elementos que foram amplamente retratados pelos expressionistas”, esclarece a pesquisadora e coordenadora do programa de pós-graduação em design da Uemg, Rita Ribeiro.
“Os sinais estavam todos ali, em diversas obras, desde ‘O Grito’, de Edvard Munch, até ‘Nosferatu’. A arte sempre nos alerta mesmo que às vezes não damos ouvidos a seu chamado”, adverte.
Para a especialista, o que torna filmes como o de Murnau especiais é exatamente o fato deles permitirem que as pessoas usem o macabro para enfrentar suas crises no mundo real.
“Por que as pessoas continuam assistindo a filmes de terror, mesmo sabendo que os monstros não existem? É que precisamos vivenciar os horrores na tela para suportar aqueles da vida real”, pondera Rita.
“Com sua atmosfera claustrofóbica e mórbida, ‘Nosferatu’ foi capaz de anteceder os horrores do nazismo. Foi assim que sua estética impactante fez escola no mundo todo”, sintetiza antes de concluir com ênfase. “É uma história que se baseia na ilusão da vida eterna, um dos mitos mais cultuados pelo ser humano. Então, como não se encantar com esse filme?”, finaliza.