Na última sexta-feira (19), "Rough and Rowdy Ways" chegou às plataformas digitais e interrompeu um período de oito anos sem um disco de inéditas de Bob Dylan. A espera valeu a pena. O 39° álbum de estúdio do Nobel de Literatura é ótimo, tem força criativa e mostra que a caneta de Dylan não perdeu nada da perspicácia, da inteligência, da sensibilidade e da poesia que o bardo de Minnesota imprimiu na música pop desde que começou a cantar nos cafés e clubes de folk do Greenwich Village, na congelante Nova York do inverno de 1961.

"I Contain Multitudes", que faz referência a um verso do poeta Wilt Whitman (1819-1892), reflete sobre a morte, tema recorrente no pensamento de Dylan, como ele disse em recente entrevista ao The New York Times, é a música que abre o disco, sucedida por "False Prophet" e suas frases-charadas típicas de Dylan: "Não me lembro quando eu nasci/ E eu esqueci quando morri". As duas canções, mais "Murder Most Foul", saíram como singles. O álbum pode ser adquirido em CD ou LP (ambos duplos) em lojas nos Estados Unidos, como lista o site oficial de Dylan. 

Em "My Own Version Of You", "Scarface" e Al Pacino e Marlon Brando com seu "O Poderoso Chefão" são lembrados nessa canção de quase sete minutos e um ar sombrio. "Key West (Philosopher Pirate)" tem quase 10 minutos e traz a finitude e a eternidade do ser humano de volta à pauta: "A morte está na parede/ Diga para mim, se você tem algo a confessar/ (...) Key West é o lugar para se estar/ Se você está procurando imortalidade".

O cantor, guitarrista e gaitista norte-americano Jimmy Reed (1925-1976) ganha uma homenagem justa na excelente "Goodbye Jimmy Reed", um blues clássico, daqueles para se dançar no salão, como o da capa do disco, com um cigarro pendendo na boca depois de uma dose de um bom bourbon. É uma das melhores do disco. "Deus esteja com você, irmão querido/ Se você não se importa que eu pergunte, o que te traz aqui?/ (...) Adeus, Jimmy Reed, e tudo dentro de você/ Você não pode me ouvir ligando da Virgínia?", diz os versos da música de pouco mais de quatro minutos, belo tributo ao blueseiro do Mississippi.

"Crossing The Rubicon", levada pela guitarra do blues e um solo matador, é outra joia de "Rough and Rowdy Ways". Ela cria paisagens tantas vezes cantadas com metáforas de Dylan, como na lendária “A Hard Rain's A-gonna Fall”: "Três milhas ao norte do purgatório/ Um passo do grande além/ Rezei para a cruz, beijei as meninas/ E atravessei o Rubicon". Rubicon é uma trilha de 35 km no Oeste dos Estados Unidos, considerada a mais difícil do mundo e muita usada pelos índios para fazer comércio no início do século XIX.

A singela "Black Rider", uma espécie de oração a um cavaleiro negro, é outra boa sacada do poeta, que tem somente um violão acompanhando sua rouca e característica voz. O álbum cai um pouco com as delicadas baladas, porém arrastadas, "Mother Of Muses" e "I've Made Up My Mind To Give Myself To You". Dylan fecha o disco com "Murder Most Foul", épica e melancólica narrativa de 17 minutos sobre o assassinato de Jack Kennedy, em 1963, e várias citações a acontecimentos marcantes dos Estados Unidos e a personagens da cultura pop.

Com dez faixas, “Rough and Rowdy Ways" é uma coleção das referências culturais e influências na música, na literatura ou no cinema que o músico carrega. William Blake, Edgar Allan Poe, Beatles, Rolling Stones, Woodstock, Chopin, Marylin Monroe, Karl Marx, Júlio César, Freud, Jack Kerouac e Allen Ginsberg são citados no disco, cujo título nos remete ao country “My Rough and Rowdy Days”, canção de Waylon Jennings lançada em 1987.

O álbum é, também, o testemunho de um artista que, para nossa sorte e privilégio, continua relevante e inquieto, trazendo sempre algo novo e refletindo sobre a liberdade e a condição humana: "Eu odeio te dizer, senhor, mas apenas homens mortos são livres", ele profetiza em "Murder Most Foul". O cantor completou 79 anos em maio e a idade parece aguçar e revelar ainda mais seu olhar para o mundo, sempre atual. Certa vez, alguém disse que é preciso muito tempo para se tornar jovem. Bob Dylan já chegou lá.