Tudo vai depender se a dor na coluna vai dar uma trégua. Ou, no mínimo, uma abrandada. “Se bem que estão falando que vão me levar nem que seja à força”, brinca o premiado escritor e dramaturgo Ângelo Machado, 85, referindo-se à estreia do espetáculo teatral “A Comédia dos Defuntos sem Cova”, nesta quinta-feira à noite, no palco do Teatro da Cidade.
Claro, a vontade do autor é estar presencialmente lá, na plateia. Mesmo porque, o espetáculo marca uma experiência inédita em uma, convenhamos, já profícua trajetória. “Geralmente, as peças encenadas a partir das minhas obras são adaptações de livros já publicados. Esse é um texto original para o teatro”, diz, entusiasmado. Vale lembrar que o escritor já lançou dezenas de livros infantojuvenis – entre os quais “O Velho da Montanha: Uma Aventura Amazônica”, pelo qual foi agraciado com o Prêmio Jabuti, uma das mais importantes láureas literárias do país. Como curiosidade, cumpre sempre frisar que, formado em medicina, Machado também é ambientalista, tendo atuado como cientista e professor.
Produtora e responsável pela direção geral de “A Comédia dos Defuntos sem Cova”, Heloísa Duarte lembra que o texto, que lhe foi apresentado pelo ator Carlos Nunes, gerou anteriormente um quadro na peça “Ri Melhor Quem Ri por Último”. Depois, foi ampliado para uma montagem maior, há seis anos. Mas a versão que estreia agora é outra.
A peça flagra a amizade de dois mendigos. “Um, Arnulfo, habita uma cova no cemitério São João Batista, no Rio. O outro, uma aqui, no cemitério do Bonfim”, prossegue o escritor. É exatamente em um Dia de Finados que João, de BH, resolve visitar Arnulfo.
Tal qual “Como Sobreviver em Festas com Buffet Escasso”, uma das mais conhecidas montagens a partir de um texto de Machado, “A Comédia dos Defuntos” se vale do humor para tecer uma crítica social, abordando, no caso, questões como a moradia e a desigualdade social.
Sim, Machado acredita que o humor possa ser uma potente alavanca para a reflexão. “Nessa peça há, por exemplo, a dona da lanchonete do cemitério, que reclama da redução na venda de pães de queijo e mistos-quentes nos velórios (reverberando a crise econômica), comparando os dias atuais ao que era antes”, pontua ele.
Aliás, no texto original, o personagem era um homem, mas Heloísa decidiu investir em um papel feminino na montagem – no caso, Maria de Fátima, vivida por Carlandreia Ribeiro. “Costumo brincar que ela é uma espécie de Grilo Falante na cabeça dos dois, trazendo-as à consciência, advertindo que, se a gente não mudar esse modelo, se não houver equidade social, sempre haverá mendigos”, diz a atriz.
Maria de Fátima é uma cabo-verdiana, portanto o acento na fala vem mais do creole. “Ela aparece como uma mulher negra, mais uma figura da diáspora como tantas que estão aqui, no país, o que inclusive fortalece essa função de levar a consciência de que, se esses personagens estão ali, morando em covas, é porque estão sendo explorados por um sistema que está colocado aí”, frisa.
Em tempo: Maria de Fátima foi uma mulher que já vivenciou a prosperidade, antes de passar por uma tragédia que a levou ao cemitério. E, em certo ponto da peça, entra numa espécie de devaneio, revivendo os tempos áureos. “É como se fosse um quadro dentro da peça. Como se diz em Cabo Verde, ela está com sôdade”, especifica Carlandreia.
Tais inovações nem de longe incomodam Ângelo Machado. O autor diz que, como dramaturgo, sua “ideia é não interagir com o processo de encenação”. “Claro, se são mudanças mais relevantes, acabam me consultando”, diz ele, que também compôs três canções para a peça, como o “Unco do Furunco do Defunto”. Ah, sim. Machado adiantou que, ano que vem, deve lançar um livro reunindo todos os roteiros de peças cujos textos são de sua autoria. Incansável é pouco.